Incêndios, enchentes, tornados, terremotos, tsunamis, erupções vulcânicas, acidentes nucleares… Sozinhas ou acompanhadas (consequências de uma ou de outra), as tragédias deveriam servir de parâmetro para nosso sofrimento. Sem querer ditar um comportamento acomodado, ter dificuldade para carregar a bateria do celular jamais poderia merecer o grau trágico simplesmente porque faltariam palavras para qualificar o que houve nos municípios do Vale do Taquari, poucos dias atrás – para ficar num exemplo atual e aqui da aldeia. Por mais elástica que seja a palavra, há limites para respeitarmos, sob o risco de banalizar o sofrimento. Pensei nisso quando ouvi um “nossa, que tragédia” ao relatar minha noite de terça-feira passada. E o que, afinal, houve comigo?
Estávamos em aula durante a tempestade que inundou boa parte da cidade de Porto Alegre e derrubou mais de quatrocentas árvores em diversos bairros. No momento em que faltou energia elétrica, o único dissabor foi terminarmos as leituras com as lanternas dos celulares. Suave: faltar luz por aqui é comum. A partir de então, na companhia de quase todos os habitantes, sofremos as consequências do evento climático extremo – vimo-nos ilhados em plena Cidade Baixa. Passava um rio pela Rua da República.
Hora e meia depois, negociamos caronas e encharcamos os calçados – era a hora de enfrentar o caminho de casa. Cada carro para um lado, nas trocas de mensagens compartilhamos a dimensão do fato: em todos os quadrantes Porto Alegre estava o caos. Uma a uma, vieram notícias de estarem todos a salvo em casa. Fui o último a chegar e nem escrevi nada: passava da uma da manhã, bastava a notícia anterior, de que estava no ônibus. Sim, optei pelo ônibus, explico-me.
Minha carona topou o sacrifício de dar uma volta pelo leste deixando uma colega na porta de casa, nossa querida Lu também e, a mim, no “paradão” da Igreja São Jorge – lotada de pessoas por ser conexão leste-oeste com norte-sul. Aplicativos para cidades vizinhas estavam caríssimos e eu já estava molhado, mesmo. No fim, foi interessante: como estava ao lado de uma turma de jovens de vinte e poucos anos, colhi de seu bom-humor o alimento necessário para enfrentar os contratempos. Havia, também, a certeza de que tudo estava em ordem em casa – ainda que sem luz.
O ônibus demorou muito. Depois, ainda tinha o percurso de quilômetro e meio na chuva, no escuro e no vento até a minha porta. Um “banho de gato” e a ronda pela casa completaram as tarefas antes de a cabeça chegar ao travesseiro. No celular, 34% de bateria – patamar de luxo. Vivi uma tragédia? Não, longe disso. Vivi uma agrura, um perrengue, um infortúnio. No ânimo dos meus colegas de paradão, uma aventura dentro de uma desventura. O telhado da casa da Lu (soubemos disso ainda dentro do Apolinário) foi quebrado pela queda de uma árvore. “Tudo bem”, ela disse. “Minha filha está em segurança numa vizinha.”
Duas mortes em consequência da tempestade, pessoas sem luz por uma semana, pouca esperança de ressarcimento por prejuízos – ah, isso sim tem a dimensão de tragédia.
Muito bom, mestre!!
Aproveitando o gancho estendo à palavra “terrorismo”o mesma analise.
Veja como a dimensão do termo variou entre o nosso 8 de janeiro e o atentado em Israel.
Abraço
Pois é, Silvio… Isso deixa a gente pensando, mesmo. Valeu! Abraços!
Muito bom! Adoro tuas crônicas. Fiquei pensando sobre isso, realmente, exageramos nas palavras para que elas chamem atenção para nós mesmos. A tragédia é que sempre ouviremos que a tragédia do outro foi maior, para mais tarde descobrirmos, que nem uma ou outra era uma tragédia de verdade. Somos eternos contadores de histórias, ansiosos por interlocutores que brilhem os olhos ao nos ler ou ouvir, por isso usamos palavras para chamar atenção, e algumas vezes, distorcendo o verdadeiro significado que ela carrega.
Adriana, um grande lamento que tenho é de palavras serem injustamente banalizadas, perdendo sua verdadeira intensidade. Muito obrigado! Abração
Perfeito. Um relato honesto!
Obrigado, Jorge!