Número 340

DESMATAMENTO

Casamento é mata fechada, densa, com delicada diversidade, mas com alguma chance de sufocar. Um estado civil bem diverso ao da solteirice: campo ensolarado e franco, cenário de batalhas para caça e caçador. No campo, o horizonte se mostra pleno, 360° de possibilidades para as mais loucas aventuras. No casamento, resta subir à copa dos sonhos para liberar a visão em todos os sentidos. Mesmo assim, lá não viveremos o tempo inteiro: não somos pássaros, e os sonhos apenas nos iludem com asas de nuvens.

A floresta chamada casamento é para além de sedutora, escondendo no lusco-fusco muitos encantamentos. Só nela, e em nenhum lugar mais, florescem orquídeas raras. A sombra é constante e prazerosa; o anoitecer, aconchegante. Quem conhece as trilhas encontra com facilidade cachoeiras de água pura. Também é lá que estão as árvores de raízes profundas e troncos com seiva perfumada ‒ ah, o amor! Há borboletas e filhos, canto dos passarinhos, cipós para servirem de varal, cheiro forte de terra. É nas cavernas da mata que estamos seguros das tempestades. Difícil mesmo é evitar o surgimento do limo nas pedras do caminho.

Por outro lado, todo homem casado, e toda mulher, antes de se embrenharem na mata, habitaram o campo. Conhecem muito bem a rotina do vento forte, dos rápidos deslocamentos, da vegetação rasteira ‒ composta de beijos orvalhados e pouco comprometidos. A amplidão do céu crivado de estrelas em noites solitárias. As árvores esparsas, nas quais se pode subir de vez em quando: nunca deixamos de sonhar! Eles ainda lembram que no campo era necessário, também, conviver com uma certa dose de perigo ‒ a exposição é típica neste cenário. Talvez seja por isso que os descomprometidos andem sempre em bando. Amigos ‒ nossa! ‒, como se protegem…

Houve um tempo em que estes dois ambientes eram menos permeáveis. Os humanos que se mudavam para a mata fatalmente morriam por lá. Ou, como alternativa, terminavam seus dias nas suaves clareiras da viuvez. Hoje, posso estar até enganado, vejo as pessoas entrando na floresta meio de costas, sem tirar os olhos da saída. Agindo assim, nem bem estão no campo, nem bem no mato. E, sem coragem para mudar de entorno, dificilmente penetram muito fundo. Que cachoeira qual nada! Sai para lá borboleta! Ao diabo com essa raiz que só me faz tropeçar! Êta tronco áspero! É lá fora que brilha o astro rei… Há, também, aqueles que estacionam nas margens ‒ um pé lá, outro cá.

Porém, mesmo quem se aprofunda na floresta pode um dia desejar sair. Ou de lá ser despejado, como se intruso fosse. De um momento para o outro, precisará se expor ao sol aberto, apelando para urgente proteção. Faltará fôlego para as correrias, malandragem na hora de arrumar alimento. Nenhum desespero: trilhar o campo é como andar de bicicleta ‒ descontada a pouca destreza (que sobrava outrora) ninguém desaprende. E mato não tem porta: é só voltar lá para dentro na primeira oportunidade. Ou na segunda, terceira, décima oitava… Pois é: às vezes fica complicado voltar ‒ querer não será o suficiente.

Enfim, nosso tempo está deixando a fronteira do mato com o campo mais frequentada que entrada de formigueiro. Mas essa não é nem de longe a pior (melhor?) notícia. Preocupante mesmo é a derrubada galopante da floresta. Parece que virou moda a idéia de que só o campo aberto é lugar de se colher felicidade. Estarei eu, bicho do mato, fadado à extinção?

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