Passou o tempo do lar ditatorial. Hoje, na classe média, família e democracia são conceitos casados. Ou, ao menos, deveriam ser. Em casas onde todos trabalham, quanto maior a intimidade com os procedimentos democráticos de convivência, mais harmonia é experimentada. Porém, não pensem que isto é fácil. Dar voz – e voto – para pai, mãe e filhos, exige uma boa dose de preparo. E, claro, há quem exagere na dose. Tipo o casal na manhã de sábado – desjejum mais tranqüilo, filhos dormindo até tarde, leitura do jornal. A esposa abaixa o suplemento de arquitetura:
– Arnaldo: não agüento mais! Quando vamos fazer a bendita reforma na área de serviço?
Sem tirar os olhos da página de esportes, ele responde:
– O processo está tramitando na subcomissão de obras…
– Sim, querido, isso eu sei! Mas já tem quase dois anos e nada de ele avançar para a ordem do dia.
Neste momento, os dois já se olham.
– Marisa, não tenho culpa. Não é a única matéria estacionada. Ainda mais agora, em tempos de aperto. Nosso salário mal e mal dá para despesas ordinárias da pasta, como troca de lâmpadas, pequenos reparos, jardinagem… – volta para a leitura. E sugere: – Uma saída é o desvio de verbas destinadas a supérfluos. Salão de beleza, por exemplo.
– Ah, muito fácil para você avançar na receita dirigida aos outros! Fazemos isso e, depois, quando lascar o esmalte, aparecerem cabelos brancos e sobrarem uns pelinhos inconvenientes, serei eu quem ficará devendo explicações ao eleitorado! – baixa o jornal do marido. Desafia: – Por mim, cortamos a verba do futebol.
– Impossível! Faz tempo que retirei esta rubrica de “lazer e cultura” e coloquei na pasta da saúde. Saúde mental! – retorna à leitura. – E, como já foi votado anteriormente, saúde tem prioridade nesta casa.
– Que ódio! Jamais engoli esta manobra de plenário. Sua e do Júnior! Ninguém me convence de que não compraram o voto da Alicinha com uma promessa de suplementação orçamentária na cantina da escola.
Fim-de-semana comprometido. Marisa, inconformada com o descaso de Arnaldo, parte para o contra-ataque. Tranca a pauta de vez. E, à noite, quando ele tenta um acordo de líderes, ela manobra com a base e se retira da sala de votação. Urna lacrada. Sem quorum, o marido só pensa na ditadura.
Não menos que “genial”. Explica a confusão das famílias modernas e, de sobra, lança uma luz sobre a nossa política nacional.
Tchê, por que não temos cronistas como tu em nossos jornais? Quando é que eles vão parar de contratar o “amigo do amigo”, o colega do “clubinho”, para valorizar talentos como tu?
Um abração, parabéns mais uma vez.