CARTA DE UMA DEPENDENTE
Circula na imprensa mundial uma carta de revoltante contundência. Ela foi escrita por alguém dependente das drogas. Diz: “A vida aqui não é vida, é um desperdício de tempo”; “Aqui vivemos como mortos. Estou mal fisicamente. Não consigo comer, estou sem apetite, meus cabelos estão caindo em grande quantidade”; “Não tenho vontade para nada. Creio que esta é a única coisa boa…”.
A mensagem, que serviria como uma luva para ser emitida por alguém que afundou no precipício da dependência química, é de Ingrid Betancourt, uma franco-colombiana que está há mais de cinco anos em cativeiro. Ela é refém das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia – FARC –, um grupo de narco-gerrilha. Enfim, sua liberdade depende da disposição dos barões da droga em negociar o resgate.
Suas dependências se resumem a uma rede e uma prateleira. Há três anos pede “um dicionário para ler, aprender algo, manter a curiosidade intelectual viva”. As drogas que estão atrofiando o cérebro desta mulher são aquelas que a sociedade consome com uma hipocrisia inacreditável, e que sustentam a guerrilha. Talvez sua disposição em afrontar este sistema perverso quando candidata à presidência da Colômbia tenha sido determinante no momento do seqüestro. Com certeza a disposição social em continuar consumindo drogas ilícitas, ou de mantê-las como mercado criminoso, perpetua sua tragédia.
Ingrid é uma dependente em todos os sentidos. Depende da civilidade dos guerrilheiros e dos companheiros de martírio para se manter íntegra – é a única mulher em seu grupo. Depende do julgamento alheio – e sumário – para viver ou morrer. Depende dos movimentos do Exército Colombiano para ficar ou partir às pressas do acampamento. Depende da comida que lhe alcançam, das roupas que ainda tem, de um mosquiteiro para não ser devorada por insetos na Selva Amazônica. Mas depende também do esforço do governo em subjugar os criminosos, depende das orações e da esperança dos amigos e parentes, depende de uma imprensa livre e disposta a denunciar seu estado de sofrimento.
A inter-dependência entre os crimes de seqüestro (e os assassinatos, os latrocínios, os roubos à mão armada, a corrupção) e o consumo de drogas não pode ser mais evidente. Ela já foi alvo de campanhas publicitárias diretas e indiretas, é um discurso recorrente entre as autoridades da segurança pública e, mais do que nunca, foi amplificada no filme “Tropa de Elite”. Os usuários de drogas fazem de conta que uma coisa não está ligada à outra. Porém, desde sempre, o dinheiro que sustenta a máquina tem origem na compra da cocaína, da maconha, do ecstasy. O destino dos prisioneiros das FARC depende, sim, do cardápio daquela festa bacana para a qual você poderá ser um dos convidados.
Morro de pena dos dependentes de drogas – pessoas que, entre nós, corroem sua vida social, sua saúde, sua família. Lamento, também, a existência de uma moral torta entre os usuários não dependentes – gente disposta a aspirar princípios em troca de um delírio químico fugaz. Contudo, nenhum destes casos é mais grave do que o de Ingrid Betancourt: alguém que, em suas próprias palavras, vive como uma morta. Dependente da droga que ela não consome. Consumida pela droga de quem dela depende.
Caro Rubens
Recebi teu email “Dois convites muito especiais” e desemboquei no blog. Quero parabenizar pelas duas útimas crônicas, a dos “dependentes” e aquela sobre a Versão Brasileira.
Vida longa para a banda!
abraços
Paulo Campos
Parabéns pela publicação desta crônica na “Zero Hora” de 08 de dezembro de 2007: ganharam o jornal e os leitores com esse texto tão contundente em sua mensagem e tão original em sua proposta.