Não sei quantas vezes durante a infância, pouco importando o tamanho da arte cometida, escutei essa frase vinda dos meus pais: menino, tu não tens vergonha? Fosse fazer xixi no pátio do vizinho, quebrar ‒ de propósito ‒ o brinquedo da irmã, responder de modo desrespeitoso a um adulto, toda e qualquer malcriação, na visão de quem me educava, deveria ser motivo suficiente para que eu me envergonhasse. Além do mais, quando eu não me comportava direito na casa dos outros, na escola ou em uma loja, quem morria de vergonha eram os meus pais. Então, depois de se desculparem por mim, me repreendiam severamente, deixando claro que eu, agindo assim, os envergonhara.
O resultado dessa educação de rédeas curtas e limites claros, muito comum em outros tempos, foi a consciência de que, não gostando de passar vergonha, eu deveria tratar de ser bem educado e andar na linha. Em outras palavras, a capacidade de eu sentir vergonha dos meus desvios de conduta passou a ser motivo de orgulho para quem me educou. Assim, depois de crescido, não precisei mais do pai ou da mãe me dizendo o que é certo ou errado, nem como fazer para ser considerado alguém digno de respeito. Sou muito grato a eles por isso, na mesma medida em que espero a gratidão dos filhos, no futuro.
Essa introdução faz algum sentido quando analisamos um fato recém acontecido em Viamão, cidade da Grande Porto Alegre onde moro, mais especificamente na Escola Estadual Barão de Lucena. Logo depois de arrecadar dinheiro na comunidade e pintar o prédio em forma de mutirão (ele estava coberto de pichações), a professora (e vice-diretora) obrigou um aluno de 14 anos a, diante dos colegas, cobrir com tinta os escritos que ele próprio havia feito, entre outros, nas paredes recém pintadas. Mais: teria dito que o menino seria um bobo da corte, fato evidente por ter sido filmado em um celular. Ao filme, obtido por um estudante sem o aval da professora, foi dada publicidade. O resultado é que os pais se insurgiram contra a educadora, alegando humilhação. Exigem sua punição, enquanto o menino não quer mais voltar para a sala de aula.
Antes de defender ou condenar a professora, ou mensurar seu eventual excesso, fui acometido de um sentimento exultante: até que enfim as pessoas estão retomando a capacidade de sentir vergonha! O pichador foi revelado corrigindo seu delito e ficou com vergonha? Viva! Os pais estão morrendo de vergonha por ter um filho malcriado e reagem de modo passional e desesperado em sua defesa? Aleluia! Porque quando alguém vem me visitar em Viamão, e transita diante dos prédios completamente pichados da principal avenida da cidade, quem morre de vergonha somos nós: eu e todos mais que respeitam o espaço público e privado.
Precisamos abandonar a ideia de que quem comete delitos é esperto e quem é cumpridor de suas obrigações é trouxa. Aparecer na TV algemado depois de cometer um delito é vergonhoso? Sim, é: todos tentam esconder o rosto. Para evitar isso, que tal não cometer crimes? Ver exposta sua identidade sofrendo uma censura depois de fazer algo errado é vergonhoso? Claro que é, tornando legítima a reclamação dos pais do aluno pichador. Vergonha maior, no entanto, deveria ser o fato de ele ter cometido, acintosa e deliberadamente, o ato! Isso foi o que eu aprendi em casa.
Dou a cara a tapa diante dos estudiosos da área da Educação quando me posiciono mais a favor da professora do que dos pais e do aluno. Considero como atenuante o fato de que ela ainda estava com os braços doendo depois de repintar o prédio quando foi incisiva na punição ao pichador. Também desculpo a população que vibrou tanto quanto eu ao ver alguém ser punido de modo exemplar: faz tempo que a vergonha está pendendo apenas para o lado de quem não deveria senti-la. A inversão anda tanta que um corretivo merecido, ao invés de ser trivial, virou notícia de TV! Ou a população revisa seus valores, voltando a ter orgulho da virtude e vergonha da delinquência, ou tudo estará perdido. Estranhamente, uma das minhas virtudes é saber, desde pequeno, como é ruim sentir vergonha.