Fundo perdido

Número 435
Rubem Penz
Levou os meus planos, meus pobres enganos
Os meus vinte anos, o meu coração
                                                                                               Chico Buarque
“Entreguei-lhe os melhores anos de minha vida”. Eis uma frase clássica, dita e repetida por mulheres ao longo da história de muitos relacionamentos, bem no momento em que eles chegam ao fim. Uma cobrança, sem dúvida. Porém, com um agravante: tal dívida jamais poderá ser saldada. Nem amortizada, nem perdoada, nem convertida. Estamos falando de tempo – aquilo que não retorna jamais. Daí sua trágica contundência.


Bom, uma das estratégias masculinas para escapar dessa cobrança é negar a dívida: “Foi uma troca – os meus pelos seus. E você entregou por iniciativa própria, por conta e no risco”. Já adianto que nem sempre funciona, mesmo que obedeça a uma lógica irretocável. A questão é que elas sempre acham que valem mais, doam-se mais, abdicam mais. Taco a taco só existiria em uma relação homossexual – perdoem o chiste.


Outra maneira de sentir-se desonerado é a de (tentar) reverter o quadro: “Se ao meu lado aconteceram os melhores anos de sua vida, então sou credor”. E agora? Quem recebeu de quem? Quem deu o quê? Estando tão bom, não há nada a ser cobrado. Ao contrário, a mulher deveria agradecer: “Obrigada pelos melhores anos de minha vida”. Por nada, por nada – diria o ex – foi um prazer e uma honra ser o responsável por sua felicidade. Para, depois, esperar pelo vaso que viria voando na direção da cabeça.


(Já sei: estou me afundando. Tentarei o resgate.)


Pena que, na vida, a coisa não seja assim tão simples. Quando elas nos dizem que entregaram os melhores anos da vida delas, estão dizendo que foram os melhores anos de nossas vidas. E foram. Nada supera o tempo passado ao lado de quem está apaixonado por você, acarinhando, mimando, estimulando. Na paixão, alcançamos o ápice do amor próprio: desejamos quem também nos deseja. Ser querido é o aditivo mais poderoso do universo. Supera o álcool, as drogas, a adrenalina. Supera tudo. É tão bom que vale o sacrifício.


Mas, supondo que houve paixão dos dois lados, o que transformaria ambos em credores, por qual motivo as mulheres tanto se queixam dos tais “melhores anos” que lhes parecem sonegados? A resposta está na palavra juventude. A lisura da pele e a firmeza das carnes são ativos de grande prestígio entre as fêmeas. Isso desde a época dos contos de fadas, ou das cavernas, até hoje (o cirurgião plástico agradece). Basta lembrar o pesadelo da Rainha Má diante da fresca Branca de Neve – é o espelho quem acusa o declínio de sua jovialidade, não o rei, que até morrera.


Por isso, a masculina tábua de salvação é apelar ao Chico, unanimidade entre as mulheres, para encontrar a resposta final ao dilema. Na música A Rita, ele reproduz a mesmíssima queixa: o rapaz lamenta a perda dos vinte anos, dos planos, dos pobres enganos e do coração. Os durões não admitem, mas sofremos lupicínios ao ter o coração partido. Assim, caro homem, quando ela o acusar de ter investido mal a juventude em sua carteira de ações, revide na mesma moeda: diga que suas aplicações também se depreciaram no fundo (perdido) do poço. E que, pior, bem pior, lhe restou mudo o violão. Ou alguém duvida que sejam elas a nos inspirar?


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