Reciclagem

Número 454
Rubem Penz
Ainda há quem se surpreenda com a alegria, com a esperança e com a generosidade dos despossuídos, em especial nessa época do ano. E considere um mistério maior do que o destino de nossas almas aquele sorriso desdentado que teima em se mostrar no rosto do morador de rua; a paz de espírito de quem habita uma encosta sujeita a deslizar, exposto à guilhotina de lama; a confiança em dias melhores daqueles que passam fome para mal alimentar seus muitos filhos, vítimas do trágico nascimento. Sem almejar a pretensão de conhecer a chave desse enigma, uma hipótese: em grande parte, quase sem querer, desperdiçamos os votos de Ano Novo. Mas eles não se perdem.
Desde meados de dezembro, ou mesmo antes, veículos de comunicação e mensagens entre amigos em redes sociais nos ofertam boas aspirações para o próximo período. Em proporção de exagero – exagero do bem, é claro –, nos é servida uma verdadeira ceia de palavras. São versos de grandes poetas, mensagens de filósofos e pensadores, conselhos de teólogos e humanistas, tiradas de humor e muitas lições de vida. Nos cálices, valiosas bênçãos. Tudo muito, muito além de nosso apetite, desejo ou capacidade de apreciar e absorver, criando um inevitável excedente.
Por outro lado, o comportamento reiteradamente hostil e egoísta de algumas pessoas deixa evidente que os votos de Ano Novo a elas dirigidos são colocados na beira da calçada mesmo antes de saírem dos pacotes. Gente sem disponibilidade ou paciência para isso – coisa de vagabundo. Tempo é dinheiro, e nada que Drummond tenha nos deixado pagará a conta do cartão de crédito. Para quem não tem o hábito de compartilhar, desejos de felicidade são bajulações, agrados medidos e interesseiros. Para os que não aprenderam a servir, o conforto alheio é tarefa a ser terceirizada. Bem-estar, paz? Estão no plano de saúde e nos muros do condomínio.
Assim, seja do que restou da fartura de nossa mesa, seja pelo descarte dos que sequer abrem mensagens de Natal, toneladas de bons fluidos se tornam disponíveis para reciclagem. A energia positiva que não fomos capazes de absorver jamais se esvai – alimenta os que, por hábito, já lambem o sorriso das celebridades nas fotos de revistas para sentir o tênue sabor do sucesso e da fama.
Votos sem dono escorrem pelo contra fluxo dos esgotos a céu aberto, subindo pelo chão de terra batida até encontrar bom destino no coração de quem valoriza cada migalha de esperança. Na medida em que embalagens de presentes de Natal serão trocadas por centavos no quilo de papelão, os desejos de Ano Novo chegarão para outros destinos, diferentes dos originais. E amenizarão aflições.
Eis a importância de espalharmos sinceros votos de saúde, felicidade e paz: para cada um que os desperdiça, existem muitos que reciclam.

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