Número 462
Rubem Penz
É uma manhã comum de terça-feira cumprida com rotineira eficiência naquela empresa multinacional. Na ampla sala do décimo oitavo andar, o horizonte inunda as paredes de vidro com suas ondas de luz. Entre os profissionais, dois estão diante de uma mesma tela, um de pé, atentos a um projeto recém esboçado e confabulando em tom diminuto. O restante do pessoal permanece ensimesmado em suas mesas, alguns com fones de ouvidos, outros em silêncio. Como uma lufada de inexplicável vento, o diretor administrativo entra no recinto servindo de precursor ao diretor superintendente, três passos atrás – chegara de surpresa na cidade. Ele traz uma notícia que não deveria circular nem mesmo na intranet:
– A canoa virou.
Todos permanecem em seus lugares quase como paralisados. Celso, aquele que se encontrava de pé, estanca no meio da mascada do chiclete com a boca aberta – eis uma imagem que poderia definir a situação. Porém, em dado momento, numa coreografia tão perfeita que dispensa ensaios, mil olhos apontam para Antônio Castro. Engenheiro Antônio Castro, o líder do programa. O maestro. Quem reunira, um a um, todos os que ali estavam. Dele viria uma posição. Não se furtou:
– Porque deixaram ela virar.
Mas o diretor superintendente viera calçado. Apoia sua pasta sobre uma das mesas, abre e dali saca um calhamaço de relatórios. Desde que passara a ser uma exigência para seguir competindo em escala global – isto é, há muito tempo – a empresa investira pesado em complexos sistemas de normas. A cada ano, novos processos, numa escalada que beirava o engessamento. Todos haveriam de nadar corredeira acima, nem que parecesse um trabalho de Sísifo, para estar em dia com tais normas. Erguendo os papéis como se contivessem os Mandamentos, o homem acusa:
– Foi por causa da Maria.
Maria Eulália. Miss Engenharia 1996. Porte de destaque de escola de samba na pele de deusa nórdica. Pós-doutora. Abandonara promissora carreira acadêmica para atender ao chamado sedutor de um salário acrescido de alguns zeros à direita. As tantas normas que foram incapazes de evitar o afundamento da canoa serviram, tão somente, para denunciar as vacilantes resoluções da engenheira acima de qualquer suspeita. Ela é, agora, o centro das atenções. Terá muitas explicações pela frente, pois a acusação é forte:
– Ela não soube remar.
No fim da sala, quase na fronteira com as portas dos sanitários, está Gustavo, engenheiro trainee, ocupando o posto há poucos meses. Ele não tem a mais remota responsabilidade pelo que acontecera com a canoa, pois foi o último dali a subir no barco. Em suas mãos estivera pouco mais de uma mísera felpa de tal remo. Por isso, não parece temer a lógica empresarial que costuma transferir as responsabilidades para a base da pirâmide de comando, sacrificando o lambari e poupando os tubarões. É apenas um doce edipiano perdido em ilusões quase pueris. No afã de conquistar o coração de Maria Eulália, é refém do traiçoeiro canto da sereia. Apenas sonha:
“Se eu fosse um peixinho
E soubesse nadar
Eu tirava a Maria
Lá do fundo do mar”
Sim, os engenheiros também amam. No fundo, Gustavo, peixe pequeno, sem saber, antecipa seu destino.
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Divertidíssimo!
Brilhante! “Remador Engenheiro” e peixe, sei o que é.
O Engenheiro do Hopi Hari também deve estar se sentindo assim: “vai sobrar pra mim!!!!”
Abraços.
Luciano
Marcelo, és engenheiro, remador e peixe. Mas dos grandes!
Luciano, que naufrágio esse caso do Hopi Hari… Sem dúvida, deve ter um engenheiro puxando o ar.
Abraços, Rubem