Número 484
Rubem Penz
Existem pessoas que cultivam com enorme apreço seus desafetos, nutrem com zelo as picuinhas, sorvem com prazer a menor chance de implicar com o outro. Tire a dúvida: coloque-o num balneário deserto um final de semana inteiro. Céu azul, temperatura agradável, água fresca, ninguém por perto. Paz? Que nada, inferno! Felicidade é alguém oferecendo um bom motivo para a discórdia – o que ocorre com frequência quando o tema é futebol.
Soube que isso sempre acontecia entre dois vizinhos de apartamento, seu Antônio Maria e Juarez. Torcedores de clubes rivais, nenhum perdia a oportunidade de festejar em alto brado suas glórias, ou de tripudiar sobre o insucesso alheio. Bastava um dos times fazer ou levar um gol para o vizinho beneficiado subir o volume do rádio, colocar a cabeça para fora da janela e gritar com endereço certo: Toma boneca, essa é pra aprender! Lá e cá, sempre a mesma irritante frase: Toma boneca, essa é pra aprender!
Houve uma quarta-feira de campeonato regional em que eles se encontraram no elevador. Juarez tinha um pacote de latinhas de cerveja nas mãos – providência a ser gelada para a noite de clássico. Provocaram-se discretamente, cada qual mais confiante do que o outro, ambos com medo da possível flauta. Temor procedente, pois o jogo foi muito parelho e se manteve em zero a zero até os 42 do segundo tempo. Num lance de bola parada, o time do seu Antônio Maria selou o placar. Juarez estranhou o silêncio.
O velho morava só, e Juarez disse para a esposa que havia algo errado acontecendo. Ligou para a portaria perguntando se o vizinho havia saído de casa. Não. Correu até a porta ao lado e chamou com insistência. Nada. Sem pestanejar, pediu ajuda e forçaram a fechadura. Ele estava desmaiado no banheiro. Correram para o pronto-socorro. Graças a Deus não passara de um susto, mas ficou hospitalizado para investigar as causas da perda dos sentidos.
A verdade é que Juarez prestava muita atenção ao vizinho, mesmo que isso só fosse perceptível em dias de futebol. O que fez, certamente foi determinante na recuperação de seu Antônio Maria. Este que, aliás, soube do resultado do jogo apenas na quinta-feira à tarde. Ainda baixado para exames, ao receber a visita do rival, fez questão de chamá-lo para um abraço. Era comovente vê-lo tão agradecido. Então, ao ouvido, balbuciou: Tomou ontem, né boneca?