As lições de um hematoma

Número 491

Rubem Penz

Ler uma entrevista do Prof. Dr. Luiz Roberto Rigolin na Folha de São Paulo foi uma experiência de regressão: visitei minha vida passada de educador físico. E nem precisei mudar de encarnação, apenas voltar algumas profissões atrás. Na matéria do jornal, Rigolin defende que “estamos criando analfabetos motores”. O termo é forte – talvez de propósito –, ainda que, para alguns casos, bastante adequado.

Sua tese recai sobre as crianças de classe média alta e alta, as quais perdem a oportunidade de desenvolver em plenitude seu potencial motor ao não experimentar determinados movimentos no tempo certo. Afinal, do mesmo modo com que capacidades cognitivas são adquiridas em etapas do desenvolvimento, a competência gestual também depende de estímulos múltiplos, adequados e pontuais.

Essa responsabilidade pode ser dividida entre vários culpados. Um deles é o medo: crianças não brincam mais nas ruas, livres para subir em árvores, atirar pedras, competir em brincadeiras como as de pegar ou jogos artesanais, escalar telhados, fabricar seus apetrechos ou lutar. Antes que alguém fique chocado, pergunte aos avós se não era essa a rotina fora da escola. Hoje, isso só acontece em zonas periféricas, e olhe lá. A violência ameaça crianças longe da tutela dos pais ou cuidadores.

Outro responsável é o excesso de zelo. Filhos de lares abastados parecem feitos com esqueleto de cristal, pele de porcelana e confiança delgada como a casca do ovo. Um bibelô cuja menor fissura pode significar a demissão da babá, um processo contra a escola, um drama desproporcional na família ou acusações mútuas em casos de pais separados. Enquanto isso, num passado recente, eu e meus contemporâneos nos esfolamos, nos quebramos (inclusive os dentes) e nos cortamos, entre outros traumas mais ou menos graves. E a consequência foi, ainda, ficar de castigo.

Por fim, ainda temos a confusão entre a educação física e o esporte. Cabe ao profissional alertar que são conceitos diferentes, ainda que complementares. Um desenvolve capacidades gerais, a famosa inteligência motora. Do mesmo modo como é mais fácil aprender uma terceira língua depois da segunda, é mais rápido reproduzir novos fundamentos quando se encontra relações com experiências motoras conhecidas. Depois, quando há um claro pendor (ou desejo), será o momento de se tornar especialista num só esporte. Com vantagens.

Os pais precisam ficar em alerta para o risco do tal analfabetismo motor. Isso influencia da inteligência à autoestima. Mais tarde, a vida real cobrará essa conta. Vida real? – pergunta alguém. Sim! Pois os avatares dessa turminha são ágeis, habilidosos, valentes, fortes, equilibrados, espertos e mortais. Tudo o que gostávamos de ser fora dos videogames.


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