Número 503
Um filme diante dos olhos
Rubem Penz
Um dia vi o trabalho de um homem que fotografou durante anos a mesma paisagem. Todos os dias, ou com uma frequência quase assim. Então, montou os instantâneos como se formassem um filme. Impressionante! Não fazemos ideia de quanto o entorno se modifica com o passar dos anos, dia a dia. Árvores crescem, perdem e ganham folhas e flores e frutos. Terrenos abrigam casas, casas cedem lugar a prédios, prédios mudam toda a face do bairro. Perde-se horizonte diariamente no pulsar apressado de nossas jovens cidades, numa escalada vertical e vertiginosa.
Encantado, pensei em fazer o mesmo, ao menos uma vez por ano: fotografar a vista do quarto, ou da varanda, ou da sacada da frente. Pensei, mas não fiz. Falhei de cara por estender o intervalo entre as fotos planejando facilitar o trabalho: o que consegui foi esquecer a tarefa autoimposta. Falhei, também, por julgar meu entorno menos suscetível às mudanças, uma vez que está encravado em um condomínio horizontal retirado: fotos frequentes seriam um desperdício e meu “filme” seria monótono. Hoje, se pego uma imagem de dez anos atrás, nem posso crer. E nada aconteceu do dia para a noite – eu que perdi de registrar o processo.
Como nos Jardins de Monet, se tivesse cumprido minha lição, saberia que tons podem estar mais perto de nós do que imaginamos, bastando deixar a primavera, verão, outono e inverno moverem os pincéis. Veria a luz das estações fazerem paredes inteiras dançar como em um teatro de sobras. Registraria quão mais assustador é o céu que antecede a tormenta tanto mais é aberto o horizonte e, todavia, quão mais promissor é o alvorecer sem nuvens nessa mesma condição. Afinal, já se foram dez anos de um enraizamento no mesmo CEP.
Admitindo reciprocidade, creio que a paisagem também teria um pouco a reparar em mim, o suposto (e negligente) retratista. Caso fosse clicado de volta, no mínimo ofereceria um cardápio variado na indumentária, desde o casaco mais fechado até o despojamento seminu. Mas, ao zoom do olhar furtivo, até mesmo o ânimo seria revelado, descortinando, além das aparências, meus (im)próprios invernos, as distantes primaveras, os luminosos verões e os introspectivos outonos. É um exercício interessante, esse, de se colocar como paisagem da paisagem. Um pouco perturbador na medida em que somos obrigados a admitir o fato de que a natureza só nos teria como detalhe: um busto efêmero na janela. O humano é menos do que canário na gaiola – quando sumir (ao sumir), nem a saudade do cantar ficará na rotina do horizonte.
Sem que eu tenha feito minhas fotos, na dor ou no alívio de ser menos do que quase nada nesta paisagem, não cabe agora lamentar o passado. Todas as cores estão firmes em minha memória. A luz impressionou meus sentimentos. A dinâmica da vida marcou minha trajetória. Tudo mudou no mesmo vagar e irredutibilidade como também mudei. Para resgate, o jeito é esperar o átimo da morte. Nele, segundo a lenda, passa um filme diante dos nossos olhos. Deus deve estar cumprindo a tarefa a qual negligenciei…
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Sábado, dia 15, 12h na Rádio FM Cultura (107.7MHz), estarei no programa “As músicas que fizeram sua cabeça”, entrevista com Ivete Brandalise. Convido a ouvirem!
Rubem, gostei muito do modo que descreves o passar do tempo e a impossibilidade de registrá-lo, ou mesmo, por acharmos que à nossa volta nada muda…
A sensação de ser paisagem é outra idéia que vivo quando estou em minha casa em Gramado. Tenho um banco “filosófico” onde fico admirando a natureza, tentando captar os segredos que o vento sussurra, Me sinto observada por olhos curiosos. Imagino como as plantas se sentem ao ver alguém invadir seu mundo. É intrigante.
Quanto ao teu fracassado intento de reviver Monet, estação à estação, horas diversas, seria uma tarefa para nosso colega Luciano e haja percepção!
E para o resgate de que falas, não precisa esperar a morte. A tecnologia anda tão avançada que se colocarmos uma câmera “indiscreta” em nossa varanda poderemos apreciar, em HD, a mudança das estações, e assim a passagem do tempo sofrida em nós… Abraços.