Um tango na presença do Divino

Coluna do jornal Metro Porto Alegre em 10.04.2013

UM TANGO NA PRESENÇA DO DIVINO

Juro por Deus. Entrávamos com nossos instrumentos musicais em uma das mais belas igrejas do Rio Grande do Sul para testar o som antes de uma apresentação contratada pelo poder público municipal, quando nos deparamos com um casal que comunga da mesma arte ajustando seu equipamento. Certamente iriam entoar suas canções durante a celebração da Santa Missa que precedia nossa execução. Antes mesmo de conversarmos, desconfiei de que algo não evoluiria bem ao escutar a jovem senhora ajustando os microfones: no lugar dos tradicionais “um, dois”, “teste” ou “som”, ela repetia “Jesus, Jesus, Jesus”. No íntimo, temi.

Quero crer que havia um quase sorriso quando nos cumprimentamos. Indagados sobre o que faríamos ali, a resposta foi uma apresentação musical. De que tipo? Tango. Agora me socorro das imagens clássicas dos filmes: foi como se o céu escurecesse no olhar da mulher. E, do fundo da alma, surgiu como um trovão o eco da mesma palavra: Tango? Dentro da igreja? Na presença do Divino? – apontando com as mãos para o altar. Neste momento, o homem tentou uma tímida conciliação, dizendo que, afinal, seria música. Fuzilado pelo olhar, ela o contradisse ríspida: Música? Tango? Na presença do Divino? Estávamos condenados.

O que seguiu foi um diálogo de surdos. O bandoneonista, um dos mais conceituados do Brasil, entrou na conversa para informar, calmo e conciliador, que já havia executado tangos com orquestra e coral em uma catedral paulista para mil e duzentas pessoas. Mas a senhora não queria mais conversa. Fechou-se em um monólogo de falsa indulgência dizendo que cada um sabe de si, faz o que bem quer e tudo bem. Ao mesmo tempo, intercalava com expressões de horror e choque. Na prática, não passamos o som: não havia clima. O violonista, célebre filho da cidade, foi poupado do constrangimento, pois estava distante e sendo festejado pelos amigos. Retiramo-nos.

Depois da missa, o inevitável reencontro – nós a montar o palco, eles desmontando o seu. A jovem senhora disse para outra mulher que tinha vontade de chorar por causa do que aconteceria, tomando todo o cuidado para que eu a escutasse. Calei-me num misto de respeito e piedade. Resolvi deixar a última palavra com o Divino. Ele fala conosco por vias indiretas e, se houvesse reprovação, viria algum sinal. Ao contrário, o som esteve mais do que perfeito. Violão e bandoneon executaram os temas divinamente e eu percuti a contento – sucesso! Concentrado, não mais vi o casal. Se eles não ficaram para nos escutar até o final, isso sim foi um pecado.

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