Rubem Penz
Amanhecer com raios de sol ultrapassando a fresta da cortina depois de uma noite de temporal;
Escutar no rádio uma música que você havia esquecido, e notar que ainda sabe a letra inteira;
Entrar pela manhã numa casa da infância e notar que há feijão sendo preparado na cozinha;
Cevar o mate antes mesmo de o sol nascer e, no amargo, saber-se parte de uma história maior;
Na ida, cruzar com as pontas dos dedos o corpo da mulher amada e, na volta, com as unhas;
Sem querer, mas em boa hora, encontrar uma nota de vinte reais no bolso de um casaco;
Adormecer numa rede depois do almoço, sem camisa, à sombra e embalado pela brisa do mar;
Acomodar um filho pequeno no quadril e trilhar longa distância sem ao menos notar seu peso;
Subir ao palco e receber da plateia a energia que justifica a sua presença neste pedaço de céu;
Cumprimentar um vizinho ao caminhar na rua e receber dele um sorriso franco e afável;
Ver finalmente no varal sumir aquela mancha de uma peça de roupa que gostamos muito;
Trilhar por uma onda verde na avenida justo quando o tempo está apertado para chegar;
Abraçar um desconhecido no estádio para comemorar um gol sofrido, decisivo, improvável;
Sonhar com alguém muito bem quisto, já falecido, um sonho tão sereno que nos cause paz;
Conhecer um ídolo pessoalmente, falar com ele e medir a profundidade de seu olhar;
Ter ou receber gratidão verdadeira e justa quando nenhum outro prêmio está em jogo;
Chegar ao final de um conto completamente sem ar e ao final de um romance com lágrimas;
Encontrar a saída para um enigma, um problema, uma desavença trabalhando em conjunto;
Cruzar com uma pessoa que não vemos faz muitos anos e – ufa! – lembrar de seu nome;
Esquecer da hora por um longo período porque nada ou ninguém o fez consultar o relógio;
Entrar em museus, igrejas, salas de aula, teatros, restaurantes, banheiros limpos e bons bares;
Ser fisgado por um filme desde a primeira cena, ou melhor, ao passar os créditos de abertura;
Encontrar numa crônica a exata descrição do que pensamos, o reforço para algo que cremos;
Melhor ainda: encontrar na crônica um pensamento novo, a necessária revisão de uma crença.
Texto publicado no Metro Jornal em 23.02.16