Dois Charlies, dois mundos, um só espanto

Dois Charlies, dois mundos, um só espanto

Rubem Penz

Setenta e cinco anos separam as obras de dois Charlies, um Chaplin, outro Brooker. Por outro lado, elas apresentam no enredo o mesmo assombro do homem diante de sua criação, além de seu impacto no cotidiano, no comportamento, na alma. Refiro-me a Tempos modernos (Charlie Chaplin, 1936) e Black Mirror (Charlie Brooker, 2011). São retratos de uma sociedade adoecida sob o impacto das transformações aceleradas, quando não descontroladas. Uma, situada na plenitude da Revolução Industrial. Outra, em nossa Era Digital engatinhante. Dois mundos: um concreto, mecânico, pesado; outro virtual, etéreo, pesadelo.

Interessante notarmos que Chaplin compunha para a mais exuberante arte daquele momento, a cinematográfica. Seus filmes, distribuídos e exibidos nas telonas das salas escuras do mundo inteiro, antecipavam os conceitos de globalização, de indústria cultural com faturamento de largo alcance. Para Brooker, a consagração surgiu no momento em que a Netflix passou a distribuir sua série concebida para a TV via streaming, alcançando o planeta inteiro e chegando nas telinhas das palmas das mãos dos consumidores. Um, com projeção ótica através de conceitos mecânicos (moviolas). Outro, a partir da Internet e da enorme capacidade de processamento de dados dos novos chips. Um no girar dos parafusos. Outro no correr das telas.

Seria a solução partirmos para as montanhas e viver de caça e coleta, em harmonia com a natureza e imunes à ambição?

Nestes três quartos de século a engenharia humana experimentou avanços só imaginados pela delirante ficção científica. E a coisa andou rápida. As mudanças febris fazem nascer sentimentos neoluddistas, preocupados em frear o ritmo e obedecer ao status quo. Mas nem sempre é plausível. Estivéssemos cozinhando em fogões a lenha, o planeta já estaria colapsado por tantos seres humanos produzindo fumaça. No fundo, a tecnologia altera hábitos de modo a tornar nossa hipertrofiada população possível. Para a pergunta “Quantos de nós a Terra suportará?”, nasce sua irmã siamesa “Quem vive e quem morre para o bem do planeta?” a complicar tudo. Fome, peste, genocídios – isso ninguém quer. A tal quota de sacrifício é complicada.

O interessante nas duas obras é ambas terem como cenário a tecnologia e suas transformações impostas, e como tema de fundo as mesmas e seculares aflições: a solidão, a mortalidade, o amor; o medo do desconhecido e do desconforto e da desadequação; a incapacidade de encontrarmos a paz interior diante de tantos estímulos externos. Seria a solução partirmos para as montanhas e viver de caça e coleta, em harmonia com a natureza e imunes à ambição? Como não há montanha suficiente para todo mundo, a resposta óbvia é não. (Sem falar que o nirvana é abalado pela primeira mordida de cobra.) No fundo, por maior que seja nosso espanto com a Inteligência Artificial e seu avanço em nossa rotina – ou por mais que sigamos em dúvida de como lidar com isso – o problema é outro: como faço para dar sentido à minha vida.

Essa questão, nem o Google resolve.

 

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