Limpando a alcatra e pensando nela
Rubem Penz
O domingo de estrogonofe começa ao limpar a alcatra. Numa carne nobre e magra há pouco o que tirar, mas há. No pedaço generoso, com mais de um quilo, o separado mal completa um pires. Do restante, parte vira cubos, parte bifes para refeições vindouras. E, diante das aparas, um engasgo se transforma em lágrimas.
O último dia de maio levou a Lua, uma simpaticíssima cadela labralata (cruza de labrador com vira-latas). Preta, tinha uma mancha branca no peito e outra na pata dianteira, quase só nos dedos. Seu olhar expressivo ficara embaçado pela idade, a audição também se fora e a mobilidade vinha em grave decadência – passar dos 15 anos é bastante difícil para cães do seu porte. Porém, bastava eu aparecer nas cercanias para ela, apenas com o olfato, notar-me e abanar o rabo esperando atenção.
Jamais deixarei de lembrar dela, e de seu apetite maravilhoso, quando aparas de carne de gado ou frango forem descartadas.
No apogeu da juventude a Lua foi um furacão. Cachorro de pátio, tipo raiz, sabia que não era bem-vinda dentro de casa. No máximo, entrava e saía repetidamente entre a pia da cozinha e o armário da churrasqueira (onde ficava o pote da ração) acompanhando com grande interesse a feitura de seu prato. Na varanda, permanecia apenas quando eu estava junto pois, sozinha, aprontava: ia para o chão toda terra dos vasos, qualquer objeto inadvertidamente deixado virava seu brinquedo. Tais hábitos permaneceram até o fim.
Ao ver pets comportadíssimos dentro de automóveis, pensava: por que não com a Lua? Especulo ser o único lugar capaz de dar a ela um pouco de paz aquele o qual ela jamais pôde estar – o do motorista, ao meu colo. Por isso, não ia para a praia conosco e deixávamos um tratador encarregado. Até que adoeceu gravemente em uma das oportunidades recentes. Uma semana hospitalizada entre a vida e a morte. A partir de então, com boa dose de paciência para quem ocupasse os demais bancos do carro, ela também veraneou os poucos dias que estive na Praia do Barco. Hoje isso me traz consolo.
Lua minguou com o esvaziamento da casa – chegara quando as crianças eram crianças e, sabemos, o tempo muda essas coisas. Nunca mordeu uma só pessoa, jamais rosnou para mim. Odiava gatos que ousassem entrar no quintal e ficava horas latindo se algum estivesse deitado no muro. Fez uma amizade tão fraternal quanto interesseira com o Arnaldo e o pessoal que construiu sua casa ao nosso fundo, alimentada por pedaços de ossos costela. Gostava de tomar banhos de sol no inverno e de chuva no verão.
Planos imutáveis apontam para a vida em um apartamento, e não sou lá muito fã de bicho dentro de casa. Assim, a Lua terá exclusividade em meu coração. Acima dos cães da minha infância e juventude, pois nossa relação foi construída em outro nível. Jamais deixarei de lembrar dela, e de seu apetite maravilhoso, quando aparas de carne de gado ou frango forem descartadas. Ela morreu diante de mim, depois de recusar comida por alguns dias. Sabíamos, os dois, que eram momentos de despedida.
Ah, em três segundos devoraria as aparas de alcatra.