É primavera
Rubem Penz
Acontece alguma coisa em nossos corpos quando os primeiros ares da primavera se insinuam. Uma ressalva: o inverno não tem o condão de inibir tais espasmos. Mesmo na estação mais fria do ano, dependendo do estímulo, do disparador, o que estava adormecido desperta tão incontrolavelmente forte como se não fosse possível ser contido nem pelo mais elevado monge, a mais serena freira, a mais inocente criança. É mais potente do que nós. Um derramar-se. Um anseio. Uma metralhadora cujo dedo pressionou o gatilho.
Mas, voltemos à primavera.
Nela, a natureza se organiza para mudar nosso corpo. Porque não é só conosco – está em todos os detalhes. Nos pássaros, nas flores, na disposição de ir para a rua ou, no mínimo, de abrir cortinas e janelas com a intenção de a rua invadir nossas casas. Tudo nasce com este outro sol, mais presente e cálido, indisfarçável, dominante. E com o vento – ares de viração, de inquietude, de prazer. Também com as cores capazes de chamar nossos olhos para as nuances, outras nuances diversas ao recente cotidiano.
Tudo conspira para sua chegada na primavera, aquilo nosso sem domínio ou controle, latente, adormecido.
E sobem as mangas, e baixam os decotes, e encurtam calças e saias. E despem-se os pés, e brilham os joelhos, e soltam-se os cabelos. E alongam-se os dias, e chamam-nos os parques, e a preguiça perde seu domínio. Tudo conspira para sua chegada na primavera, aquilo nosso sem domínio ou controle, latente, adormecido. Negar sua natureza é tarefa vã – como fosse possível nadar cachoeira acima.
É quando a coisa beira o constrangimento. Assalta-nos durante o coquetel entre autoridades, uma prova, a missa (que pecado!). O pensamento foca nas tarefas e o corpo impõe outra direção. As urgências da carne roubam nossa atenção, sequestram os gestos, dominam. Os mais recatados passam vergonha – todos devem estar olhando para mim; todos repararam; todos sabem o que se passa em meu interior. Aos mais relaxados resta a certeza de que a culpa é da primavera – a natureza programa a vida.
Estou nessa onda – deixa vir. E vem mesmo! Vem com tudo! Ah, essa maldita e primaveril rinite…