Madrugada
RubemPenz
Era madrugada quando uma insônia encontrou-se com outra insônia na casa. E param para conversar. A outra, que há muitos anos não habitava a casa, contou histórias antigas de sua vida tão jovem. Coisas sobre ali, sobre a noite, sobre o tempo. Sobre as madrugadas.
Disse-lhe de quanta coragem precisou ser garimpada a cada vez que o sono sumiu. Pior quando a necessidade era encarar o longo corredor durante uma noite ou outra para ir ao banheiro. Uma casa tem proporções diferentes quando se é pequeno.
Perguntou se lembrava de ela ficar na sala da TV, deitada no sofá, olhando qualquer programa – talvez até adormecer no sofá – enquanto os pais não chegassem de sabe lá para onde tivessem ido. Pior é que a primeira insônia esquecera-se completamente disso e ela, não.
Estiveram distantes de consenso sobre a frequência em que uma precisou recorrer à cama da outra depois de um pesadelo ou um susto ou um medo ou outro motivo qualquer trazido pela noite alta. Um lado garantiu serem muitas, outro contou nem tantas. Talvez a verdade esteja no meio termo.
Lembranças podem ser trazidas por fotos, por músicas, sabores, aromas. Na madrugada, elas foram disparadas pelo silêncio da casa, por aquele encontro no quarto testemunhado pela luz pequena do abajur. Por seus silêncios tantos. Por lágrimas passadas, por uma intimidade esquecida no fundo de alguma gaveta.
Quando uma insônia esteve emotiva, a outra perguntou a razão. Disse-lhe ver a criança pequena que ela fora ali, agora, diante de si. Sim, respondeu, a criança está aqui, sempre me acompanha. E o mundo se encheu de sentido. Parecia ter chegado o momento de dar boa noite. Voltaram a dormir.
Transmitir o pendor à insônia não pode ser considerado um legado interessante. Ainda assim, são tantos os nossos problemas, que algum escapa para as gerações futuras. Resta ficar na torcida por uma qualidade ou outra ter se infiltrado no barco do tempo. Quem sabe a paixão pelas primeiras horas do dia, dos raios de sol nascente… Ainda que sejam encarados com sono.