Feijão nosso de cada dia
RubemPenz
Busco na memória meu aroma mais antigo e um assalta a lembrança: o de feijão vindo da cozinha. Sei que fui guiado ao seio materno por causa do cheiro da mãe, serviu-me de alerta a fumaça, encantou-me o perfume das flores ou da terra molhada pela chuva de verão ou dos cabelos da mulher amada (inclusive daquelas que nem eram mulheres ainda e não sabiam serem amadas por mim). Esta página seria facilmente preenchida por aspirares infinitos, tanto de prazer quanto de desgosto. Ainda assim, ao procurar aromas antigos, o feijão saltou na frente.
Junto com ele desenharam-se na lembrança a arquitetura das minhas saudosas cozinhas. As da infância, muitas delas, com dois fogões lado a lado: um com bicos de gás, outro com o calor da lenha. Os ladrilhos avermelhados no chão, ou o piso tabuado da “cozinha de baixo” da Vila Morena, o composto de mármore ainda firme na casa da Pedro Chaves, cada uma das minhas próprias – territórios onde deixei de ser visita e passei a ser dono e senhor. Cada volume deste que é o centro afetivo da casa tem seu cheiro, mas, na manhã de cozinhar o feijão, tudo ficará em segundo plano.
As faces e as mãos e o corpo das pessoas seguem o mesmo destino: vêm a mim para dar um olá. Dona Isolde, mãe querida, vó Clara e vó Morena, Ercília, Carmen (que se chamava Carmen Lúcia, mas não gostava que a lembrássemos), Dona Maria, Dona Eva… São todas mulheres a cozinhar meus antigos feijões. Mesmo tendo tios bons de colher de pau – Raul e Zé –, suas feijoadas para mim não trazem a força das segundas-feiras cotidianas, da fome corriqueira, do hábito de acompanhar seus movimentos (passa daqui, gurizinho, que cozinha não é lugar de criança!).
E feijão vem acompanhado de tantos sons! O metal da faca batendo ágil na madeira para triturar fininho os temperos, o borbulhar da panela de ferro ou o chiar da pressão, a colher de sopa a raspar o prato fundo atrás do último pouquinho de caldo – lamber era falta de educação. Tinha também o arrastar dos grãos para as escolhas, separar pedrinhas ou outros corpos intrusos vindos de uma compra a granel. Hoje o empacotar do feijão é industrializado, coisa confortável e segura. Em tempos idos, a certeza de dentes inteiros era diretamente proporcional ao capricho das cozinheiras. Outro som “feijoeiro”? Pedidos de mais.
Porém, essa lembrança tão arraigada trouxe uma inquietação: se me é assim presente e caro o aroma do feijão, como ser insensível à fome que bate na porta de tantos lares neste momento? Como não adotar uma rotina de doações às entidades de socorro à população vulnerável? Perguntas que todos responderão a seu modo, a seu tempo. Solidariedade é como tempero de feijão: algo simples e que faz toda a diferença.