Das razões ocultas

Das razões ocultas

RubemPenz

Fôssemos cavar e cavar em busca da raiz primeira de todas as tradições, sem muita surpresa encontraríamos no nascedouro das coisas o singelo acaso. O despropósito antes do propósito. Ora vestido de coincidência, ora despido de razões maiores, passaríamos a ter atitudes repetidas com o passar do tempo e, depois de muito tempo fazendo igual, nunca mais nos lembraríamos dos porquês. O entorno – em maior e menor escala – também seria moldado pelo famoso e irracional “porque sim”.

Ainda que esta tese mereça a ilustração de grandes eventos para justificá-la, ela se explica muito mais fortemente nas miudezas. Por exemplo: onde você guarda a caixinha de costura da casa? Aquela mesma tão necessária ao cair um botão da camisa na hora imprópria e que, a exemplo da irmã caixinha de primeiros socorros, mesmo quando não se quer, precisa ser acessada com urgência? Eu sei que você sabe responder. O que interessa aqui é outra informação: ela está onde está por quê? Palpites: ou foi porque quando você se mudou para a casa atual o antigo móvel onde ela estava foi parar naquele canto, ou porque, ao desfazer as caixas, ela foi colocada ali onde agora está (e sempre esteve), imaginando ser bom.

Outra: a trena. Por ser maior do que uma régua – que estará no estojo, ele mesmo cuja localização é digna de aqui constar – e do que a fita métrica, acomodada na referida caixinha de costura, precisamos da trena em momentos em que grandes dimensões importam para ordenar a vida. E, por experiência própria e observação atenta, descobri que nem sempre a trena é guardada na caixa de ferramentas. Aqui em casa ela está na gaveta da direita do móvel na área de serviço, junto com uma saudável miscelânea. Poderia elencar uma série de possíveis endereços para ela, incluindo o armário onde está a caixinha de costura, ou as gavetas do escritório junto ao estojo, ou mesmo a caixa de ferramentas. Mas não. Ela pousou naquele lugar faz quase duas décadas e lá ficou, todos sabem.

Último exemplo: eu e a Vanessa caminhamos por alguns bairros de Porto Alegre antes de jantar fora. Este hábito traz uma intimidade fascinante com quarteirões diferentes, uns mais conhecidos e outros jamais palmilhados. De onde teria surgido essa tradição? Em parte se explica por morarmos em um condomínio distante, dificultando voltar para casa para sair novamente. Assim, ao cair da tarde, é preciso fazer tempo até um horário razoável para sentar-se à mesa (ou mesmo abrirem-se os restaurantes). Agora, quando há centenas de programas intermediários que serviriam de opção para passar o tempo, muitos deles mais nobres, úteis ou seguros, seria justo inquirir: por que caminhar no bairro?

Ah, como seria reconfortante encontrar explicações lógicas para tudo… Relacionar cada uma das pequenas e grandes tradições com um motivo sólido, com um pensar coerente. Saber que a estrada faz aquela curva porque alguém estudou a topografia, e não porque um dia houve ali na frente uma touceira de espinhos que já não existe mais há séculos (e dela, ainda assim, todos desviamos). Pensar que controlamos nosso destino, e não o acaso. Cavar em busca do que nos move e encontrar sentido filosófico antes de um simples – muitas vezes singelo, sábio e saboroso – improviso.

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