Canis et circenses
Rubem Penz
Diz que o pastor considerou interessante pensar numa maior participação decisória para suas ovelhas, dar-lhes a oportunidade de escolherem o animal para ser aquela espécie de secretário executivo nas lidas de campereada. Não que o cachorro alguma vez deixasse o rebanho em maus lençóis. Mas por que não experimentar variações? E, como a notícia se espalhou rapidamente, muitos candidatos apareceram. Claro que nem todos com as credenciais necessárias.
Por exemplo, a coruja. Em sua plataforma, argumentou ser reconhecidamente sábia, ter uma visão de amplo espectro (gira muito sua cabeça), alcance quase ilimitado por ter asas e, mesmo carnívora, incapaz de predar cordeiros. Quando perguntada pela disponibilidade de horários para o trabalho, se disse noturna. Ou seja, alteraria completamente a rotina do rebanho. Sua candidatura permaneceu nanica.
O bugio entrou na disputa com argumentos interessantes: por ser primata, teria um parentesco com o pastor, jamais traindo a confiança da família. Ok, um conceito bastante ampliado de família. Bom de grito, sua voz de comando seria bem escutada em léguas de pasto. Quando perguntado sobre a disponibilidade de estar todos os dias no campo, se disse habitante das árvores. Ou seja, pediria para as ovelhas ficarem todas juntas em um capão. Foi quando sua candidatura se viu destinada a ser anã.
O tatu pedia passagem discretamente (como bem condiz à sua condição). Podia enxergar pouco, mas tinha muito olfato, antecipando-se às ameaças. Ao ser perguntado se era capaz de emitir sons para guiar as ovelhas, ele disse que não. Se corria ou voava, disse que não. Se vivia no campo, disse que não, mas o rebanho seria bem recebido em sua toca. Ah, restava o detalhe de também ser notívago. Enfim, sua candidatura foi terra adentro.
Até que veio o lobo. A primeira coisa que anunciou foi um sonoro “oi” ao primo cachorro (ou foi um “au”?), abanando o rabo e pedindo para relevar suas diferenças. Depois, quando se dirigiu ao rebanho, falou que tudo seria igual: correria, latiria, agruparia o pessoal não deixando ninguém se desgarrar. Quando uma ovelha mais experiente perguntou como ele lidaria com o fato de ser predador da espécie, o lobo ficou irritado. Ora, por ter essa condição, seria muito mais esperto para lidar com os outros predadores – conhecia todas as estratégias. E se o pastor mantivesse seu bolso, digo, sua barriga sempre cheia, não teria razão para avançar contra as ovelhas. Como brinde, uma carga de emoção: temer pela vida sempre deixa os dias com mais valor.
Eis que o tédio de uma condução confiável, comportada e austera, marca da administração canina, foi crucial nas urnas. Desde então, lobos estão ganhando espaço nos pastos de um certo país continental, um depois do outro, só trocando a cor. Passivas, as ovelhinhas preferem acreditar nas falsas promessas de seus próprios predadores. Pior: os novos lobos estão em peles de cordeiro.