O que não se apaga

Rubem Penz

Os distúrbios cerebrais – sendo Alzheimer o mais conhecido – ocasionam situações, no mínimo, desafiadoras. O exaustivo acompanhamento por parte da família às vezes revela um tanto de sofrimento e esconde igual proporção de carinho, outras vezes exatamente o oposto. Certo mesmo é a impossibilidade de conduzir o dia a dia sem ser tocado por uma paleta completa de cores a pintar nossas emoções. Basta uma visita de poucas horas para dimensionar a perseverança e o amor a guiar cada pequeno pedaço de rotina. Ontem, fomos a Novo Hamburgo para que a mãe visitasse sua irmã, minha tia.

Poderia contar para vocês algumas pequenas histórias ditas pelo tio antes de rir, pois as tragédias, nestes casos, se aproximam da comédia pelo absoluto inusitado. Porém, detive minha atenção para as coisas que não se apagam numa pessoa. Detalhes que revelam sua essência, para aquilo que nada poderá servir de borracha – ou, em tempos atuais, de tecla delete. Frases e atitudes que sussurram “sou eu, estou aqui” para quem se dispuser a escutar.

Frases e atitudes que sussurram “sou eu, estou aqui” para quem se dispuser a escutar.

Veja: bastou que chegássemos para a tia ficar aflita em nos servir algo, uma água que fosse. Mas, se tratando dela, sempre mais – um doce, um refrigerante, um bolo. O pior suplício para quem chegasse em sua casa seria estar de regime: haveria de ter muita firmeza diante da fartura de delícias a compor um verdadeiro café colonial, e de uma anfitriã destinada a fazer com que cada detalhe fosse experimentado. Sua torta de bolacha – como esquecer? – era famosa.

Também chegou ligeiro o comentário sobre nossos calçados. As pegadas da indústria calçadista podem estar até apagadas em algumas pessoas que hoje vivem em Novo Hamburgo, mas não nas famílias tradicionais na região. Meu avô trabalhava com calçados, e só não prosperou porque faleceu cedíssimo, deixando viúva e filhos pequenos. Coube para a vó Clara sustentar a casa fazendo tressê para sapatos, forjando uma senhora capaz de vitalizar qualquer mulher em busca de exemplos inspiradores. E as filhas se tornaram, igualmente, mulheres fortes, resistentes e, acima de tudo, protetoras.

A natureza – plantas e animais – é outra chama viva em seu olhar. Como deixar de ser presente o amor que outrora, por exemplo, transformou uma pata em gato ou cachorro? Sim, pois a Piti certamente não sabia que era pato: fazia ronda de segurança (e alarme), subia no colo, fazia festa para quem chegasse em casa. Logo, ontem a tia interrompia qualquer conversa para mostrar a pombinha rola que caminhava sem medo à nossa volta em busca de água ou alimento; e os sabiás, bem-te-vis, joões-de-barro e beija-flores que pudessem aparecer numa casa de pátio florido e de pessoas queridas.

Tudo isso deixa pequeno o fato de ela não lembrar quem sou eu, mesmo. Tenho certeza que estou ali. Estamos todos ali, em seu coração, apenas meio perdidos em informações extraviadas das gavetas tantas. Nos olhos azuis da tia Trudi vejo refletida a criança que nunca me deixou.

4 comentários em “O que não se apaga”

  1. Gerson Kauer

    Muito lindo. Quem já conviveu com a doença sabe como é difícil ver uma pessoa se esvaziar em vida. Algumas memórias cristalizadas ficam, como joias de um passado precioso.

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