Lugar de falha

Dentre todos os marcadores de violência e criminalidade, o único sem apresentar sinais de melhora nos últimos tempos e, ao contrário, com índices de agravamento é o feminicídio. Face monstruosa dos abusos diários de homens contra mulheres, ele é apenas a ponta de um enorme iceberg – a lamentável montanha de hábitos, crenças e conceitos que está abaixo da linha d’água pode ser representada pela palavra “machismo”. Logo, por ser homem, posso falar do assunto respeitando o lugar de falha.

O maior fracasso masculino principia no grave sentimento de posse. Nenhuma relação poderá ser harmônica e igualitária enquanto não for quebrado o status de propriedade defendido por algumas interpretações religiosas e legais. Ideias não puxam o gatilho nem esmurram ninguém, mas justificam – quando não defendem – a legitimidade dos atos. Homens que acreditam possuir uma mulher não apresentam o menor constrangimento em ditar normas de comportamento, vestuário e pensamento às esposas, namoradas, irmãs, filhas. Ou a impor tal comando pela violência física ou psicológica.

O maior fracasso masculino principia no grave sentimento de posse.

Outra vertente da mesma distorção é a de negar à mulher o comando de seu destino. Ao machista, todo passo demanda uma autorização. Se a mulher trabalha fora, é porque ele deixa; se a filha sai de noite, é porque ele permite; se a irmã namora o Fulano, é porque ele consente. Seu papel é ditar o que pode e o que não pode, quando pode e quando não pode. Sua máscara cai no momento em que ao filho homem, por exemplo, a autonomia não só é permitida, como estimulada. E ai de quem revelar essa contradição!

Nada é mais subversivo do que uma mulher livre, mais poderoso ou justo. Nada mais sublime. A liberdade conquistada pela mulher põe em xeque muitas crenças, controle e poder. É a soma de todas as ilegítimas impressões de posse, desde os tão inocentes pedidos para fechar o botão do decote – em nome do decoro – até os escandalosos cárceres domésticos – para sua segurança –, que deságua no feminicídio. Eis o momento em que um decide a vida do outro decretando seu fim – a obediência cabal, o preço a pagar, a morte. Porém, fazer doer nelas não expia a dor deles. Doer insuportavelmente a liberdade alheia: aqui está o lugar da criminosa falha.

 


Sobre a imagem:
Artista: Helmut Newton
Título: Crocodile eating ballerina
Fotografia, 1983

12 comentários em “Lugar de falha”

  1. Altino Mayrink

    Muito bem colocado! Nós, os homens, ainda estamos muito aquém de todas as conquistas feministas.

  2. SIMONE CAMPANI

    Muito legal maninho. Fico feliz com homens revelando uma outra face, consciente e corajosa de tomar novas posições diante de costumeiros desvarios. Assim vamos melhorando pouco a pouco 🙂

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