Entre líquens, lápides e lapsos

O musgo estava insistentemente verde na calçada de basalto do Cemitério São João – certo perigo para quem sobe a pequena ladeira na direção dos jazigos e, para quem desce, risco ainda maior. Em cada pequena rachadura das muretas, delicados inços serviam ora de debrum, ora de rodapé para estruturas em cimento outrora pintadas de branco. Árvores que não sei o nome parecem estar lá desde minha primeira visita. A impressão que elas me passam é de serem parentes próximas de outras que eu via pelo 4º Distrito da minha infância: poucas folhas, troncos escurecidos, meio tristes (penso agora se não é a mesma impressão que elas têm das pessoas que por ali passam).

Tenho quase certeza de que vi um joão-de-barro atrás de algum inseto desavisado. Um sabiá passou voando enquanto olhávamos para o chão. Sonhei isso, ou escutei um bem-te-vi? Para os pássaros, os cemitérios carregam ares de irrelevância – humanos cabisbaixos nem se tocam com a presença dos seres alados. Como esperam um dia verem anjos? Caturritas, nunca as vi. Deve ser um preceito de educação Divina – seres divertidos e barulhentos quebrariam o protocolo. Será essa a razão para ninguém levar as crianças aos atos fúnebres? Voto em caturritas e crianças no campo-santo.

Bom, até o mais distraído leitor adivinha meu final de semana. Um domingo de despedidas.

E foi exatamente enquanto minha atenção se desviava que notei haver um enorme contraste entre os antigos cemitérios das cidades e as novas estruturas funerárias. Evito qualquer julgamento de valor: não se trata de melhor ou pior. Percebi, apenas, que são diferentes. Enquanto os corredores de um crematório poderiam ser confundidos com os de um centro de convenções, as poltronas com as de um teatro, a recepção com as de hotéis, tudo em nossa transitoriedade é meio que atirado para o tempo presente. Já nos cemitérios, a morte é refletida no passado – tanto mais quanto menor forem os cuidados de manutenção.

Bom, até o mais distraído leitor adivinha meu final de semana. Um domingo de despedidas. Mas também de encontros – amigos e parentes próximos e distantes, solidários na celebração de uma passagem lamentável, precoce e, ao mesmo tempo, cheia de esperança. Uma tarde para se ter notícias da vida de pessoas com as quais nossa rotina impede o encontro. Foi isso que desejou me mostrar o joão-de-barro, dizer-me o bem-te-vi. Esse era o recado da vegetação que brotava nas frestas da mureta, no jardim antigo, na aspereza do chão.

– Você lembra de mim? – disse Roberto, filho do tio Gino*. Lembrava, sim. Mas, coisa séria, não me veio seu nome naquele momento. Uma das árvores do Cemitério São João deve ter-me lançado um olhar de censura. Uma que é prima de outra que ainda vive ali na Av. São Paulo, perto da Av. São Pedro, e talvez até lembre de mim andando de bicicleta na quadra.

*Tio Hygino (e espero ter acertado a escrita) era irmão da vó Morena.

23 comentários em “Entre líquens, lápides e lapsos”

      1. Venâncio Edgar zulian

        Ahahahah. Não só do joao-de-barro, mas de toda a natureza quando chora uma perda ou um dano.

  1. RONALDO ALBE LUCENA

    Esses momentos nos obrigam a pensar na vida. Pra sairmos mais vivos diante da morte. Na asa de um passarinho, nas rodas de uma bicicleta. Abraços, mestre.

  2. Greta Cardia Eschiletti Machado Guimarães

    Triste. Verdadeiro. Consegui ver e sentir o ambiente, as pessoas, os pássaros.

  3. Pati Neumann

    Já escrevi sobre a beleza da morte. Buscar na sensibilidade força para seguir em frente. Fiquei emocionada. Forte abraço.

    1. Jussara Nodari Lucena

      Muito boa. Gostei demais. A descrição do entorno, comparações, tio Hygino…. Parabéns, amigo. Saudades.

  4. Lindo, assim como cada fase tem seus encantos, para quem se permite enxergar. Nossos sentimentos. Abraço meu e do Zé

  5. Jane Maria Ulbrich

    Partidas e reencontros. Momentos de tristeza e de grandes lembranças. Bom que os pássaros vieram participar.

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