Às vezes surpreendo as pessoas quando conto coisas do passado. É que minha aparência um tanto comportada confunde muito e, quando menos espero, sou alvejado com um “eu jamais imaginaria” ou, na versão sincerona, um “eu não acredito”. Claro que as revelações não são sombrias como as de um Jeffrey Dahmer (o canibal americano). Porém, denunciam algo que pode oscilar entre uma trajetória errática (para o mal) e uma surpreendente capacidade de adaptação (para o bem). O freguês escolhe.
Pensava no tema ao ser assaltado por uma dúvida: qual foi meu primeiro cartão de visitas? Este objeto de arte gráfica não é, necessariamente, o registro do primeiro trabalho. Eu mesmo cumpri outras tarefas antes de ver o nome impresso com o charmoso alto relevo da serigrafia no papel encorpado. Parecerei piegas, mas é algo emocionante. E, no meu caso, muito estranho. O cartão que na vez primeira combinava minhas letras de batismo trazia abaixo “Departamento Comercial” e, acima, o nome de uma revendedora de pigmentos ligada a uma grande empresa com sede no Japão.
Cheguei lá pela amizade do dono do escritório de representação com o meu pai. Olhando em retrospectiva, minha única função aparente era escrever em português de razoável para bom os orçamentos, propostas e outras correspondências para o chefe, meu ex-professor de judô na infância, japonês radicado em Porto Alegre desde o final dos anos 1960, ou início dos setenta. Ainda assim, ganhei um cartão de visitas e, com ele no bolso, fiz minha primeira viagem de negócios: fomos para São Paulo numa feira do setor.
Aprendi coisas interessantes. Por exemplo, soube que nossa vida cromática é decidida por meia dúzia de grandes empresas as quais combinam entre si o caminho das cores que serão utilizadas pelos setores da moda, dos utensílios e da arquitetura. Por isso, quando você entra num banheiro ou elevador de um prédio antigo, as cores dialogam com sua memória infantil. Também os objetos plásticos (eu vendia pigmentos para plásticos), os tecidos, os automóveis e eletrodomésticos de época se parecem. Desculpa se revelei um certo grau de manipulação a quem tinha ilusões de autonomia…
Se você teve um caminho profissional lógico, previsível e objetivo, deixo no texto minha inveja. Nossa diferença é a mesma entre um projétil na direção do alvo e de uma bola de pinball (eu sou a bola de pinball, lógico, inclusive no que diz respeito aos necessários recomeços). Em minha defesa, onde eu estivesse terminei fazendo com mais frequência as mesmas coisas, todas ligadas à comunicação e aos relacionamentos interpessoais. Isso ao lado da música, ainda que em poucas oportunidades como profissional digno da carteira na Ordem dos Músicos do Brasil.
Deveria ter guardado todos os cartões de visitas, e não guardei. Lastimo. Seria o único registro do emprego no escritório de representações – também ali não fui assumido na Carteira de Trabalho. Já que é impossível mudar o passado (e as escolhas), ao menos teria como mapear o caos. Dahmer escapou da polícia em diversas ocasiões por causa de sua aparência. Já eu, aproveito a oportunidade de ofício para deixar algumas confissões.