Notas fúnebres 2 – os fantasmas se divertem

A morte da crônica é a morte da literatura em sua face cotidiana

Julián Fuks em “Adeus à crônica: sobre o fim silencioso e tímido de um gênero literário”

O jazz morreu em 1959

Nicholas Payton em “Por que o jazz não é mais cool”

Nicholas Payton, lá no meio distante 2011, sentenciou a morte do jazz e, à época, escrevi a crônica “Notas fúnebres e musicais”. Agora, em 2023, Julián Fuks, se não chega a lavrar o atestado de óbito da crônica, “chama as tias” (piada familiar sobre meu bisavô) porque o fim está próximo… E cá estou novamente a escrever. Afinal, são dois ótimos artigos que recomendo vivamente (sim, trocadilhos me são irresistíveis), ambos repletos de subtexto, ricos em mordacidade e que, por óbvio, mexem comigo.

Pode parecer estranho, mas consigo com muita facilidade concordar com os dois articulistas e, deles, discordar ao mesmo tempo. Para mim, ambos sentenciam a morte com absoluta precisão olhando o defunto errado. No silêncio eterno e no leito derradeiro não estão nem o jazz nem a crônica. Lá se encontra o tempo que viu nascer ambas escolas artísticas. Ou as condições propícias para o surgimento de seus contornos, os quais, eu sei, servem mais para teóricos classificarem as coisas do que para músico/escritor expressar a arte. E novos tempos renovam os gêneros, modificam-nos – para o bem ou para o mal, depende do gosto de cada um.

Pode-se dizer que escrevo em interesse próprio: são 35 anos de quarteto de jazz e vinte de crônica semanal (sou um jazzista precoce e um cronista tardio).

Quando em aula cito Afrânio Coutinho (“… um gênero literário de prosa, ao qual menos importa o assunto, em geral efêmero, do que as qualidades de estilo, a variedade, a finura e a argúcia na apreciação, a graça na análise de fatos miúdos e sem importância, ou na crítica de pessoas”), faço, vejam só, o paralelo crônica/jazz. Digo que os dois não são um o quê, e sim um como. Por exemplo: vários jazzistas têm no repertório “Someday My Prince Will Come” (que chamo em tradução livre tipo 5ª série “Um dia meu príncipe me come”), canção da Disney para Branca de Neve. Por óbvio, não é a natureza da música em si, mas como executam o tema a questão. Assim, escrever com graciosa humanidade – e calculo ter ofertado um sorriso com a bobagem ali atrás – é a faculdade primordial do cronista.

Fuks afirma que os algoritmos atuam em desfavor à sobrevida da crônica; e a pressa, a superficialidade e a severidade dos leitores não permitem sua fruição plena – ao menos nos moldes em que o gênero se estabeleceu em meados do século passado. Certo, vimos o jazz partir do dixieland, passar pelas grandes orquestras, pelo bebop, cool, modal, free, fusion, latino e, em seu espírito, jazz permanecer. Para cronistas, é preciso conhecer João do Rio, Rubem Braga, Luis Fernando Verissimo etc., sem imaginar que escreveremos da mesma forma. Mudou o tempo, muda a crônica e, importante, permanece seu espírito. “Espíritos”, sabemos, não têm vida. Portanto, nem morte.

Pode-se dizer que escrevo em interesse próprio: são 35 anos de quarteto de jazz e vinte de crônica semanal (sou um jazzista precoce e um cronista tardio). Assim seja, então. Porém, enquanto estiver vivo e saudável, habitarei com orgulho estas duas casas assombrosas, onde moram a irreverência, a improvisação e o lúdico. Sim: os fantasmas se divertem!

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Coincidências: sábado, dia 12/08, estaremos no Mercado do Bairro (Av. Teixeira Mendes, 830, Porto Alegre) para a “Noite de Jazz e Bossa”. Seja vivo e reserve mesa pelo WhatsApp 51 99222-2776.

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