Novas imagens antigas

A enchente que assolou Porto Alegre em 1967 faz parte das minhas mais antigas memórias. Olhando o jornal da época, a conta é a seguinte: faltavam alguns meses para eu completar três anos. Sim, muito pouca idade. “Memória induzida”, podem pensar uns. Não, não é. A cena que tenho é minúscula e, ao mesmo tempo, grandiosa: a vista da escada com uma lâmina de água chegando ao primeiro degrau e, com o portão aberto, a Av. São Pedro com a água marrom numa só lâmina – sem canteiro, sem leito de carros, sem calçada. Provavelmente estava no colo da mãe. E o pai devia estar lá na loja, nas tarefas de administrar as perdas.

Mesmo depois de termos nos mudado para um bairro alto, mantive laços e rotinas ligadas ao 4º Distrito de Porto Alegre – inclusive foi o lugar escolhido para endereçar uma empresa familiar na qual trabalhei por quinze anos. E ter a casa da vó Morena por lá – a mesma de minha memória – deixa um elo impossível de ser rompido, apesar de tudo. Como assim apesar de tudo? Acontece que meus sessenta anos foram suficientes para ver cercanias pujantes se tornarem decadentes e, na última década, com movimentos de reerguimento. Tímidos, mas importantes. E lidei com os alagamentos constantes abaixo da Av. Cristóvão Colombo e Benjamin Constant.

Pareço enrolar com esse papo, né? Ele é importante para eu dizer que a lendária enchente de 1941 sempre foi para mim um pouco mais do que história. As águas que nos definem ao sermos um alegre porto serviam de assombração. São Geraldo é um bairro até hoje lotado de pessoas idosas, e os idosos de 1967 eram adultos em 1941. Contavam casos vividos. Alguns veteranos de hoje eram crianças naquela que foi considerada nossa maior tragédia. Enorme se comparada com o que eu vi assustado. Até essa semana. Até hoje. Um recorde de nível do Guaíba com 83 anos ultrapassado em 60cm. Parece pouco? Olhe as fotos e veja.

A verdade é que o bicho papão nunca foi levado muito a sério. O famoso Muro da Mauá, visto como solução e defendido por muitos, sempre me pareceu um equipamento superdimensionado para cheias médias e inútil para enchentes severas. As bombas de drenagem, negligenciadas, soam como piada de mau gosto. E os diques jamais tiveram o olhar zeloso tão necessário. Pior sem eles? Dá para ser pior!? Sou herdeiro do medo das águas e minha parcela de culpa é ser parte das gerações indiferentes ao drama que, em algum momento, viria a se repetir.

E não é só Porto Alegre – são mais de trezentos municípios pedindo socorro. Cidades que hoje deixaram de existir. Um desastre com impacto cujo legado é muitíssimas vezes maior do que o Katrina em Nova Orleans – afiançou minha irmã que lá estava à época e hoje está aqui de visita. Assim, minha esperança é que de agora em diante, depois do socorro às vítimas e da recuperação da normalidade, pessoas preparadas assumam os projetos de proteção contra o caminho natural das águas. Sim: caminho natural das águas. Por seu estado de natureza, agravado pela mão do homem, acontecerá de novo e de novo e de novo. Talvez ainda aos meus olhos. Com certeza aos olhos de uma criança hoje com quase três aninhos que terá na memória cenas bem mais graves do que uma rua cheia d’água.

7 comentários em “Novas imagens antigas”

  1. Muito triste maninho… Creio que a questão de defesas naturais, tais como esta tem tantas dimensões que seria necessário um curso de PhD para estudar. Por um lado a frequência desses acontecimentos é de 1 ou 2 vezes por geração. Sabemos que ao passar o pesar e a vida voltar a certa normalidade as lições serão esquecidas. Por outro lado a incompetência publica que se preocupa mais com as manutenção do poder nas próximas eleições que com soluções duradouras (e os recursos necessários as sua manutenção). Em cima disso tudo existe a dívida humana para com a única casa que temos neste universo. De toda superfície deste planeta, 71% é agua. Isso significa que além de você e eu, com algumas pouquíssimas exceções, os outros 7 bilhões de pessoas dividem os 29% de terra firme e nestes 29% de terra firme mais de 50% da população vive bem próximos a grandes corpos de agua (Lagos, Rios, Oceanos, etc). Espero que o que vemos acontecer no RS no momento não seja um sinal do que está para acontecer em escala global. A agua, obviamente, mata, como os noticiários divulgam, mas a grande maioria de mortes em uma escala global vira de conflitos entre os que perderam tudo e os que reterem o resto… e não da agua.

    1. Rubem Penz

      Obrigado pelo comentário, Paulinho… Você tem razão – mais conflitos virão enquanto não evoluirmos para ter clareza sobre questões maiores. Muito obrigado! Abraços a ti e aos teus

        1. Rubem Penz

          Sim, desde sempre a manutenção e a prevenção são negligenciadas… Um escândalo compartilhado e, por isso, diluído. 🙁

    1. Rubem Penz

      Todos nós sentimos, Maria Lúcia. A foto da casa é um símbolo para a família. A tia Maria Helena está em segurança. A Zara, na casa de baixo, terá muito a recuperar. Beijos

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