Lembra-se da denominada Lei Ricupero? Incrível, em uma semana fará trinta anos! Flagrado por canais de satélites abertos numa conversa prévia à sua entrevista, Rubens Ricupero disse a Carlos Monforte o perigoso óbvio ululante: “o que é bom a gente fatura, o que é ruim a gente esconde”. Pensando no tema, fico imaginando se teria efetividade aos call centers subverter tal ditado criando uma instância prévia vocacionada à sinceridade. Depois do interminável digitar de números em resposta às questões gravadas, no momento de falar com uma pessoa, a conversa seria mais ou menos essa:
– Bom dia, no que posso ser inútil?
– Bom d… Hã, você quis dizer, “no que posso ser útil”…
– Não senhor. Eu quis dizer exatamente o que o senhor ouviu.
– Mas se você será inútil, nossa conversa é uma perda de tempo!
– Não senhor, espero que seja precisamente o contrário. Minha função é impedir que o senhor perca seu tempo.
– Explique-se, por favor?
– Com prazer. Nosso departamento de estatística demonstrou que 92,5% de nossas ligações recebidas correspondem a fragilidades do sistema que são intrínsecas a ele. Quase todas se encontram numa diferença entre expectativa (sua) e realidade (do sistema). Sendo assim, caso eu escute sua queixa e encaminhe para setores intermediários, eles não conseguirão resolver. E o senhor terá perdido seu tempo.
– Mas se eu explicar para você meu problema, qual seu problema em pular setores intermediários e me encaminhar direto para quem sabe das coisas?
– Eu só tenho acesso aos ramais intermediários, capazes de fazer uma escuta técnica. Com muita sorte, seu problema está nos solucionáveis e, por milagre, alguém dos setores intermediários conhecerá o ramal de que sabe das coisas. Ainda assim, aconselho o contrário: desligarmos agora enquanto estamos felizes.
– Felizes o cacete! Exijo que faça algo útil: transfira-me, por favor.
– O senhor é quem manda. E, para ser útil por completo, sugiro aproveitar os onze minutos de música a seguir (uma média) para ir ao banheiro e desmarcar qualquer agenda deste turno. Também manter na memória o número já citado: 92,5% de insucesso, que já está em curso.
– Por quê?
– Lamentavelmente porque, enfim, como o previsto, mesmo antecipando o mau destino das próximas três horas, fui perfeitamente inútil. Agora, repita seu nome completo, CPF, data de nascimento e nome de sua mãe. Ah, sim, qual sua queixa?
Parece brincadeira, mas é coisa séria. Para restituição de uma passagem Gol, gastei horas em call center e aeroporto. Sim, horas, não minutos. O último caso envolveu a Vivo, para troca de um equipamento defeituoso. Depois de alguns meses abrindo chamados, recebendo visitas técnicas, etc., com nada resolvido, reclamei à Anatel. Aí as coisas começaram a andar. Mesmo assim, precisei abrir um segundo processo na Anatel (só permitem uma réplica, e a Vivo se esquivou), a Ouvidoria da Vivo foi incluída no processo, daí foram mais algumas dezenas de minutos e visitas técnicas para, enfim, trocarem o equipamento. É absolutamente surreal. Quando faço compras no exterior e reclamos, não fazem muitas perguntas e devolvem logo o dinheiro (e já cheguei a receber o produto em atraso, após ressarcimento do dinheiro). Aqui no Brasil, com todas as leis de “proteção” ao consumidor, é essa problemática. E, no final, resta o telemarketing, inundando nossos celulares com dezenas de Spam e tentativas de fraudes, diariamente. Não, isso não é síndrome de país vira-latas. São fatos.
Rubem cirúrgico, como sempre! Cada vez fala-se mais em conexão com o cliente, mas é cada “raiva” que a gente passa…
Tais “conexões” são promessas falsas, Patrícia. Um horror!
Obrigado, beijos!
Claro que é sério, Antônio! E o deboche que faço é também é!
Lamento muito suas experiências. E tudo tem se tornado cada vez pior…
Abraços
De repente o teu texto cai no setor certo e comove alguém disposto a reduzir para 90,5% a fragilidade e imprecisão do sistema. Tenha esperança! Significa que duas pessoas a cada cem deixarão de se estressar, terá sido útil. Lamentável é saber que outras 90,5 a cada cem pessoas continuará achando que foi inútil. Que tais “conexões” são promessas falsas. Que tudo é falso, tudo é inútil, só os seus próprios esforços não.
Ótimas colocações, Auri!
Quero crer que não tenham ironia (perdoa a defensiva).
Abraços, Rubem
Entre a última vírgula e o último ponto? É auto ironia. Auto sugestão irônica. Não pretende te atingir ou ao teu leitor. É granada de mão aberta contra si mesmo. Se chegou aí foi só um estilhaço.
Obrigado por esclarecer! Também, claro, por contribuir com suas observações sempre pertinentes. 🙂