Enquanto isso, na sala da diretoria…
– “… e, por obra do destino, numa estrada de montanha no meio da Sicília, Mirabel reencontra Anthony, cabisbaixo, sentado à beira do caminho com sua bicicleta quebrada. A conexão se restabelece na primeira troca de olhares, ela oferece carona e, em fade out, a cena em que eles colocam a bicicleta no porta-malas, vinhedos ao fundo…”. Você chama isso de roteiro com final feliz?
– Não há uma reconciliação explícita, mas compreendida por quem acompanhou o…
– Desnecessário querer me explicar, ok? Meu avô teria amado. Meu pai, aprovado. Mas quem manda no estúdio agora sou eu. E isso é um enredo de terror! Ele é um homem hetero, cis, branco e de classe média. Pior: profissional liberal. Muito pior: com indicação para procurarmos Ryan Gosling para mostrar este roteiro! Enlouqueceu? É o final mais infeliz possível para Mirabel. A repetição de todos os clichês machistas de príncipe encantado. Sabe como eu vejo o futuro do casal? Ela submetida às suas vontades, anulando-se como pessoa, abandonando a carreira, apagando sua personalidade, aderindo ao sistema, criando filhos, bebendo ao cair da tarde para conseguir enfrentar o desgosto de ter reencontrado Anthony naquele final de tarde.
– Mas, veja bem, Mirabel não tem carreira. Ela é herdeira e sofre por jamais ter-se encontrado. Anthony é apenas um jovem cirurgião em hospital público, um homem simples e bom, em ano sabático depois do trauma de ter perdido uma criança na mesa de cirurgia… Apaixonam-se porque ele apresenta para ela uma vida com causas nobres.
– Não interessa! E se Mirabel estiver com sua nova namorada gostosíssima no carro e passam jogando poeira no pseudomacho em seu veículo potente sem função à beira da estrada?
– Mas ele está de bicicleta…
– Não interessa! Peraí, tira a namorada para não parecer objetificação sexual recorrente do corpo da mulher. Um namorado novo. Negro, enorme, com um sorriso cativante…
– Mas esse personagem já existe, é seu melhor amigo. E é gay…
– Ah, é. Tem razão. E seria o aproveitamento de clichês étnicos de potência masculina. Viu, os homens atrapalhando tudo outra vez.
– E se pensarmos em Anthony como um asiático? Indiano? Árabe? Latino?
– Pior. Não dá. Deixa o Ryan Gosling mesmo e faz Mirabel passar reto. Ela encontrará seu próprio destino sem estar à sombra de um homem.
– Quem sabe, então, ela esteja a caminho de ser voluntária em alguma instituição, abdicando de sua vida de luxo e excentricidades? Pode ser. Gostei. Final feliz, ele de alguma forma deixou suas marcas e escapamos do romance como promessa de felicidade.
– Não… Por quê? Ela segue sua vida e assume a direção dos estúdios de cinema da família. The Happy End!
Sensacional!
Obrigado!
https://alegracatarina.wordpress.com/2024/09/03/eu-e-o-uno/
Muito bom! Parapenz!
Boa Rubem! Perfeito sentimento da loucura deste mundo atual. Falou o vovô Miguel
Há camadas de críticas neste suposto diálogo… Todas imunes ao cancelamento sob o risco de assumirem papel ridículo, Miguel. Abraços