Neuralizadores não existem. Isso não significa que não possam existir, pois já foram criados. Como assim? É confuso, eu sei. Vamos lá: antes de existirem submarinos, existiu o Nautilus em Vinte mil léguas submarinas. Depois do Nautilus, existem submarinos. Antes de existir um equipamento capaz de nos fazer desver e desouvir, apareceu o neuralizador em Homens de preto. Aguardamos pelo futuro – no século IX, viajar abaixo da linha d´água era ficção científica. Por enquanto, fiquemos com o valioso incômodo de ver ou ouvir o que, na opinião de alguns, deveríamos não ter visto ou ouvido.
Um exemplo singelo da impossibilidade de desver relembra os anos 1970 – época em que azulejos decorados eram a moda na arquitetura de interiores. Sua colocação demandava um cuidado extraordinário, pois, na maioria dos casos, os desenhos eram composições refinadas de arabescos ou arranjos semelhantes. Um pequeno descuido e estariam posicionados de lado ou de cabeça para baixo. Por ser um detalhe, pessoas normais poderiam passar anos sem reparar na falha. Até ver. Depois de visto, os olhos sempre voltariam ao engano.
“Eu te amo” é um clássico da impossibilidade de desouvir alguma coisa. Mesmo sabedor de que é possível deixar de amar ou de ser amado por alguém, esquecer que aconteceu é falso. Ninguém esquece. Às vezes, roga aos céus por uma amnésia seletiva, um lapso pontual. Porém, lá no fundo ecoará o conjunto de palavras mágicas. Por isso que somos tão prudentes no enunciado (ou deveríamos ser). Dizer que ama sem amar é pior do que qualquer azulejo torto. Não dizer, amando, é ferida que nunca cicatriza.
Dou essa volta toda para dizer o quanto é importante existir a imprensa e ela ser livre e diversa. Poderosos adorariam contar com neutralizadores. Sem eles, recebem a ajuda de o cidadão normal não registrar tudo na retina e a mídia amiga ocultar (esquecer?) deslizes. Caberá ao jornalismo isento e ético o dever de ser a memória coletiva que aponta juras falsas e atitudes tortas. Só por isso, ainda que não seja pouco, vale a defesa da liberdade e da pluralidade de manifestações. Igualmente, deve-se valorizar as casas legislativas no caráter fiscalizador e louvar sua pluralidade.
Lembre-se: na vida real, assim como na ficção, portadores de um neuralizador julgarão agir em nome do bem.
Se substituir o enunciado do terceiro parágrafo pelo menos sedutor “Eu não te amo”, o efeito seria praticamente o mesmo, mas o escritor poderia se sentir pior, porque não estaria seduzindo.
Será? O efeito poderia ser até contrário, Auri.
“Sempre que houver duas interpretações…”
Escolha a pior!
Hei, essa frase é minha, mas está com o sinal invertido!
Amigo Rubem. Vou novamente reforçar o que publica o histórico colega Anchietano:
“O quanto é importante existir a imprensa e ela ser livre e diversa. Poderosos adorariam contar com neutralizadores. Vale a defesa da liberdade e da pluralidade de manifestações”.
“Na vida real, assim como na ficção, portadores de um neuralizador julgarão agir em nome do bem”.
Muitas barbariedades têm sido feitas “em nome do bem” da “democracia”.
O duro é encontrar “jornalismo isento e ético”
Parabéns!
Abraço
Miguel, não vamos nos queixar de barriga cheia. Ainda há pluralidade e bom jornalismo. Nem todo mundo tem isso. Muito obrigado, abraços!