Documentos, por favor

Quando jovem, por estarmos nos estertores de um regime cívico-militar conservador, quase todos os filmes do cinema – ao menos os mais interessantes – caíam na classificação de dezoito anos. Os critérios, se não me falha a memória, eram conter sexo, violência, política e drogas. Se apertassem de verdade em tal enunciado, nem Branca de Neve escaparia. Mas preciso falar a verdade: o que me incomodava era as restrições ao sexo (do nu ao ato). Então, no glorioso ano de 1982, fiz dezoito, ganhei meu passaporte ao mundo dos adultos e pude viajar ao país das virilhas expostas.

Uso a imagem do passaporte de modo intencional: exatamente como o clássico documento de permissão de passagem fronteiriça em viagens, precisava estar com minha carteira de identidade sempre no bolso para ingressar na sala escura. Na maioridade, com boa vontade e fé, aparentava ter uns catorze anos. Nem sempre os porteiros tinham fé e boa vontade, e o carteiraço se fazia necessário. Por isso, maldizia o destino de parecer pouco mais do que um pré-adolescente, ainda que estivesse na universidade e tudo.

Também mostrei diversas vezes a carteira de motorista. Um caso emblemático aconteceu numa viagem de volta do Litoral, quando a Polícia Rodoviária me parou sem motivos. Documentos apresentados, fizeram uma rápida vistoria no veículo em busca de algo para multar. Nada encontraram. Por fim, disseram que fora flagrado numa ultrapassagem perigosa. Mentira. Ainda assim, levei a autuação para casa: na verdade pensaram que uma criança estava ao volante e se viram feridos na dignidade.

Ainda assim, pensando em termos percentuais, os infortúnios de parecer muito mais jovem ocuparam uma parte minoritária de minha vida. Aos trinta já tinha adquirido cara de maior e pararam de desconfiar. E segui por um longo período, toda a denominada “vida adulta”, demonstrando um frescor divorciado dos anos de existência terrena. E, ao contrário da antiga desvalorização, quando se é maduro, a juventude tem certo valor, ao menos na primeira vista.

Corta para o final de semana. Pela primeira vez usufruí do preço de meia entrada para ingressar num show graças aos sessenta. E a figura do porteiro inquisidor renasceu como Fênix a brotar das cinzas. A incredulidade das pessoas permanece a mesma, pois nada em minha aparência conduz, sem abrir margem de dúvida, à contagem cronológica. O que mudou foi o orgulho íntimo: se antes dava vivas ao tempo que vencera a imagem, agora dou vivas ao viço que venceu o tempo.

Outra vez, porém, não posso me esquecer de portar documentos.

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