A realidade e a utopia
Quando a cortina se abre, a realidade está ao centro do palco, acomodada em uma cadeira de balanço que pende ora para frente, ora para trás fazendo cleq, cleq, cleq, cleq. Veste roupas em tons de cinza, sóbrias. Calça sapatos de bico fino que permanecem encostados um no outro, apoiados apenas com o terço distal no piso de madeira. Ao seu lado, na mesa de apoio, onde seria natural existir um abajur, há um farol aceso apontado para a plateia, deixando-a sem notar a realidade com toda a nitidez necessária. Mas a realidade, ah, ela vê a cara de espanto de cada um em sua espreita. Cleq, cleq, cleq, cleq…
Como a cena não muda, um homem na segunda fila, poltrona B17, reclama alto:
– E aí? Não diz nada, não muda nada? Paguei caro para ver a realidade aí, e ela nada altera.
O farol contra os olhos mal permite que o público veja o movimento de vistas da realidade: primeiro para a poltrona B17, depois para a coxia. No exato tempo que antecede a nova reclamação, ela suspende seu movimento pendular. Cleq. Essa alteração, mesmo sutil, faz com que todos os que outrora olharam para o descontente, virem-se para o palco outra vez. O farol se apaga, mergulhando o teatro em escuridão. Quando volta a acender, o homem da poltrona B17 não está mais ali. Cleq, cleq, cleq, cleq…
Um muxoxo percorre as redondezas, entre as fileiras A, B e C, até que alguém se exalta:
– Tem uma coisa errada aqui! Sumiu o homem que questionou a realidade.
Agora o muxoxo toma conta do teatro inteiro. Porém, com a realidade indiferente, os murmúrios diminuem, diminuem, diminuem, até novo silêncio. Cleq, cleq, cleq, cleq…
– Ah, não sei de vocês, mas eu cansei! – grita a senhora da F21, poltrona ao lado do corredor, já se levantando. – Você vem comigo, Nelson?
Antes de o Nelson responder, o farol se apaga. Não há o ruído repetitivo da cadeira de balanço ou qualquer outro som que emoldure as trevas. Quando o foco de luz retorna, o que mais brilha são os olhos arregalados do marido, girando em sua poltrona F20 em busca da esposa. Agora, todos parecem falar ao mesmo tempo, especulando uma lógica no enredo. Mas é a voz de Nelson que se destaca, ao se erguer e apontar para o palco:
– Peraí! Onde foi parar a realidade?
No centro do palco, apenas a cadeira, a mesa de apoio e o farol aceso. E, no átimo de segundos de silêncio (como se todos puxassem o ar ao mesmo tempo), aparece o som de um ukulele antecedendo a entrada da utopia. Ela desce do fundo da plateia em direção ao palco tocando sua música, vestida de branco e com sandálias coloridas. Está plena, iluminada pelo farol. Cumprimenta a todos com a cabeça, repetidamente, para um lado e para o outro. Sobe no palco, senta-se na cadeira de balanço e, depois, coloca o instrumento sobre a mesa de apoio para reinaugurar o silêncio. Balança-se. Cleq, cleq, cleq, cleq…
Como a cena não muda, o homem na sétima fileira, poltrona G11, reclama alto:
– E aí? Não diz nada, não muda nada? E eu não paguei caro para ver a utopia imitar a realidade.
O farol contra os olhos mal permite que o público veja o movimento de vistas da utopia: primeiro para a poltrona G11, depois para a coxia. No exato tempo que antecede a nova reclamação, ela suspende seu movimento pendular. Cleq. Essa alteração, mesmo sutil, faz com que todos os que outrora olharam para o descontente, virem-se para frente outra vez. O farol se apaga, mergulhando o teatro em escuridão.
Fecha-se a cortina.