Número 304

AA

Você está sentado, pressuponho. É sempre bom estar assim no momento de receber uma notícia com peso de confissão. E não pretendo fazer rodeios: sim, sou membro de um grupo de apoio chamado AA. Aprendi que tenho um mal que nasceu comigo, é hereditário e determinante. Algo que me impõe um enfrentamento diário, com coragem, perseverança, conhecimento. Uma característica que já passei para os meus filhos, com certeza, e, por isso, me força a ser um modelo de combate. Quem sabe, ao verem o pai agindo de modo a fugir do padrão estabelecido, consigam do pior se preservarem. E, de alguma forma, anularem isso para futuras gerações. Faço parte, acima do orgulho ou do embaraço, do AA – os Alemães Anônimos.

Quer dizer, anônimos até ali: quem nos olha, logo se dá conta de que somos alemães. Está na cara, a pele denuncia. Também a cor dos olhos, o cabelo, o modo de ser, o sobrenome. Nós vemos, todos veem. Até por isso, nosso AA dispensa reuniões. A quem resolve fazer parte deste grupo, basta estar atento a tudo que implica ser alemão. E cuidar, cuidar muito com as armadilhas. A principal delas, creio, é a de atender às expectativas de cunho preconceituoso, que se agravaram depois da Segunda Guerra Mundial. De pais para filhos, gastamos a pele para fazer sumir a suástica que todos acreditam ter migrado dos uniformes do exército de Hitler para nossos braços. Não é fácil.

Outro desafio diário para quem faz parte do AA é o de amenizar nossa rigidez, nossa severidade. Conseguir achar graça de si mesmo, permitir-se falível, carente, arrependido. Amolecer o coração, desenrugar a testa, relaxar os ombros – essas atitudes que são ridículas de tão fáceis para muita gente, para um alemão viram trabalhos de Hércules. Dois italianos, por exemplo, podem trocar impropérios, jurar-se até de morte em um dia. No outro, estarão à mesa, discutindo o mesmo tema, ou um novo, e a vida continua. Aos alemães de fato, basta uma palavra enviesada, um mal-entendido, e deixarão de se falar até a morte. Mesmo entre pais e filhos. Mesmo entre irmãos. Ou especialmente entre eles.

A melhor maneira de entrar para o AA é, primeiro e definitivamente, assumir-se alemão. Olhar para si e para seus pares e sussurrar: muito bem, o que vou fazer com isso que sou? Afinal, nem tudo é ruim. Aliás, a maior parte dos atributos da alemoada gera bons resultados sociais – garantia até de orgulho. É bem o caso da vergonha: metade do ânimo de um alemão em cuidar do seu jardim e varrer sua calçada vem do prazer de estar em um ambiente bonito e asseado. A outra metade, do que imagina estar pensando o seu vizinho a esse respeito. Sim, “o que eles vão pensar” é quase um lema entre os alemães puro sangue. Na verdade, a questão é “o que eu pensaria se fosse eles”. No mínimo, que sou um relaxado, é a resposta. De todo modo, a cidade dos alemães é sempre limpa e bem cuidada. E isso não é bom?

Diferentemente dos alcoolistas, que em seu AA aprendem a evitar todos os dias o primeiro gole, aos Alemães Anônimos é permitida – até preconizada – a alemoíce social. Fazer deste mal um bem: contribuir para colocar quem está fora dos trilhos na linha e, ao mesmo tempo, descarrilar uma vez que outra. Começar em casa, sendo afetuoso e aberto – desarmando o espírito dos filhos. Mas aplicar isso também na profissão, na vizinhança, na história. Andar de braços nus e mostrar que não existe a suástica presumida. Dar e pedir colo. Perdoar. E, principalmente, perdoar-se.

P.S.: recomendo a todos o excelente filme O Leitor, de Stephen Daldry. Quadro contundente e detalhista do que é ser alemão. Ou, para casos como o meu, um revelador espelho.

4 comentários em “Número 304”

  1. Bela crônica, Rubem. E bela indicação de filme – “O Leitor” é de dar um nó nos conceitos de qualquer um…

    Sei que não há grande importância alguma nisso, mas repassei para ti um “selo indicativo” que recebi pelo meu blog. É uma forma de reconhecimento como leitor assíduo do “Rufar dos Tambores” há tanto tempo. Veja lá no “Locutório” (http://locutoriodofrizero.blogspot.com).

  2. Pensei alguns dias sobre se deveria postar meus pensamentos a respeito do tema ou nao. Afinal, tenho alguma experiencia no assunto, mas temia que pudesse “soar” como critica o que seria injusto ao meu grande amigo uma vez que ele capturou bem muitos aspectos da essencia da cultura alema.
    Escrever sobre uma determinada cultura eh dificil e ate perigoso. Se eu escrevesse que “todos os Brasileiros sao preguisosos e deshonestos” com certeza estaria sendo injusto com pelo menos 10% da populacao 🙂 (essa foi uma piada de alemao, por sinal… captaram?)
    Eu acredito estar escrevendo, no entanto, do alto de alguem que nasceu e cresceu no Brasil, que faz uso de um passaporte alemao para viver na Inglaterra, mas que ainda esta a procura de sua identidade cultural, se eh que isso existe mesmo. Nao consigo me caracterizar nem como Brasileiro (apesar de se-lo), nem como Alemao. Eu acho que sou o que aquela musica da Donna Summer diz: “I am what I am. I am my own special creation”.
    Do meu fracasso em viver na Alemanha aprendi que nos somos o que desejamos ser e que a caixa do que somos coleta informacoes das mais variadas fontes. Dentre elas, genetica (talvez), familia (com certeza), ambiente cultural, dificuldades existenciais e (por ser espirita) vivencias passadas. Fracassei ao viver na Alemanha porque minhas expectativas eram completamente imcompativeis com a realidade do local. Afinal, porque 60+ milhoes de Alemaes nao poderiam ter se adaptado as minhas expectativas? 🙂
    Ao se reconhecer membro do AA, o importante e determinar nos padroes sociais da cultura alema as coisas boas a serem mantidas e as coisas ruins a serem discartadas. Todos nos (Alemaes, Judeus, Brasileiros, Americanos, Ingleses, Japoneses, Chineses, seja la de onde for) temos o Nazismo, a intolerancia, etc dentro de nos. Aprender a repudiar esses tracos maleficos e nos esforcarmos para aprimorar nossos lados positivos (amor, justica social, paz, etc) nos tras proximos do que eu acredito ser o legado que Deus quer para nossa civilizacao. Nao mais Alemaes, Judeus, Brasileiros, Americanos, etc, mas sim irmaos em espirito e Cidadoes do planeta terra. Os fatos parecem indicar que esta realidade ainda muito distante se comparada em termos ao nosso limitado tempo de vida na Terra.

  3. Paulinho,
    Concordamos em muitos aspectos. A busca pela evolução pessoal (espiritual) não tem etnia, nacionalidade ou raça. Mas, se olhares o filme que me motivou a escrever, entenderás tudo o que me moveu. E comoveu…
    Obrigadão,
    Rubem

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