Número 443
Rubem Penz
Cresci em um lar amoroso. Sou grato ao destino por isso, e seria injusto ter queixas de minha infância. Havia um zelo extremado para que nós, crianças, crescêssemos pessoas educadas, responsáveis, ordeiras e solidárias. Cristãos no sentido amplo do termo, homens e mulheres capazes de exercer plena cidadania. Entre os óbvios beijos, abraços e palavras de incentivo, havia outras demonstrações de afeto, ou comprovações de proximidade, nem sempre fáceis de ser compreendidas. Abaixo, alguns exemplos:
Sorteio de tapa – Quando estávamos impossíveis, nos batendo, implicando, bagunçando (ou tudo isso ao mesmo tempo) no banco de trás do Opala da família, depois do quinto pedido para que parássemos e a ponto causarmos um acidente por prejudicar a atenção do motorista, o pai praticava aquilo que chamávamos “sorteio de tapa”: sua mão voava para nossa direção sem que ele tirasse os olhos da estrada. Em quem pegasse o safanão, ou onde, não importava muito – estaria bem dado. Funcionava como uma mágica. Certamente preveniu muitos acidentes de trânsito.
Puxão de orelhas – Forma extremamente persuasiva de conduzir uma criança daqui para ali, fazendo com que o foco de sua atenção esteja voltado apenas para a obediência. Nenhuma bailarina do Municipal apresentou tanta leveza para andar na ponta dos pés quanto eu, logo depois de estourar a paciência da minha mãe. Também era uma lição perfeita e acabada da relação entre causa e efeito, cuja aplicação acontecia sempre por minha causa e, em mim, surtia efeito imediato. Rapidamente descobri nas feições da mãe a indicação de que desejava me aplicar novos puxões de orelha, e eles nem precisavam mais acontecer para eu atendê-la.
Beliscões – Recurso predileto de minhas irmãs para convencer-me de que estava lhes causando algum incômodo, com uma obviedade epidérmica. Contra sua aplicação, estava a necessidade de elas estarem próximas o suficiente para aplicá-los – algo que eu evitava de modo diligente. A favor, uma rara discrição: tapas e socos são espalhafatosos e barulhentos; mordidas costumam deixar marcas (assim como os arranhões), e puxões de cabelo funcionam melhor entre meninas, graças à fartura de material. Tinha o beliscão grosso (espremendo muita pele entre os dedos) e o fininho (aplicado com as unhas).
Caneladas – Espingardas de chumbo, canivetes e botas ortopédicas. Essas três armas perigosas povoaram minha infância e estão em desuso. As primeiras por consciência pedagógica. A terceira, substituída por palmilhas adaptadas aos calçados normais. Eu tinha uma espingarda e uma coleção de canivetes, mas não usava contra seres humanos. Porém, as botas ortopédicas do caçula deixaram minhas canelas roxas. De tanto praticar o chute na busca de resolver a seu favor nossas diferenças, ele se tornou o único craque de futebol da família.
Óbvio que eu também submeti meus irmãos às minhas manifestações de carinho – em meio a tanto amor, até voaram objetos. E acomodo essas trocas de afeto nas páginas mais importantes da memória: sem nos gostarmos, sem união verdadeira, na certa guardaríamos mágoas de alguns episódios. Quando escuto testemunhos de pessoas que jamais bateram ou apanharam dos irmãos, ou de filhos cujos pais nunca levantaram a mão para castigar, acho muito bacana. Impressionante, mesmo! Porém, perdoem-me alguns teóricos: meu álbum está mais completo.
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