Aplausos e vaias ao iceberg

Rubem Penz

Esses dias liguei a TV num programa de variedades enquanto finalizava o almoço. Foi quando a entrevistadora chamou para o palco dois dos primeiros bailarinos do Theatro Municipal do Rio de Janeiro para uma palhinha do que em breve será encenado com orquestra, coral e corpo de baile: Carmina Burana, de Carl Orff. Dançaram divinamente e, até aí, nada de anormal: é o que se espera de artistas de elite. Porém, durante a entrevista, Filipe Moreira (o bailarino) disse que estava trabalhando como motorista de aplicativo porque já não recebem seus salários – ele precisa sustentar a família. A partir daí, instaurou-se a anormalidade.

Antes de mais nada, a função de motorista, seja em um táxi, ônibus, aplicativo ou particular, é útil, honesta e digna. Dito isso, vamos à questão de fundo: abordar a natureza das carreiras ligadas à cultura e, mais diretamente, em altíssimo nível. Grande parte das pessoas associa o trabalho de um artista ao tempo transcorrido no espetáculo, aquele entre a abertura e o fechamento das cortinas. Desconhecem o fato de ser esta uma fração minúscula da verdadeira ocupação, ainda menor quando confrontada com os muitos anos de desenvolvimento profissional. Diante de nós, público, os holofotes iluminam a pontinha do iceberg, a parte visível de uma construção gigantesca e submersa, sem a qual nada existirá.

Ainda que seja óbvio, vale lembrar que alta performance cobra horas e horas de prática diária, entre ensaios e exercícios, as quais precisam ser remuneradas sob pena de fome e miséria (ou atividades paralelas). Eis a razão de eu defender com coração e alma o financiamento público para a cultura, seja por dotação orçamentária, seja em programas de renúncia fiscal. E fazê-lo com curadoria competente e honesta para que os preciosos valores dos nossos impostos não sejam drenados para enriquecer artistas “de sempre” ou campeões de audiência. Educação e cultura, segurança, saúde e infraestrutura urbana precisam concentrar os valores arrecadados, caso contrário rumamos ao retrocesso civilizatório.

O resultado de uma auditoria séria no destino dos impostos escandalizaria qualquer um, e nem estou falando do que é roubado (outro enorme iceberg). Urge urgentissimamente competência em gestão pública. Enquanto não a temos, o primeiro bailarino deveria ser, no mínimo, a última pessoa a me levar até o Theatro Municipal do Rio guiando o carro, né? Registro aqui sonoras vaias ao Estado das coisas.

 

Crônica publicana no Metro Jornal dia 13.06.2017

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