Vão os dedos, ficam os anéis Número 299

VÃO OS DEDOS, FICAM OS ANÉIS

Partilha. Aí está uma das coisas mais complicadas da vida. Melhor dizendo, da morte. Afinal, conta-se nos dedos quem não passou por algum descontentamento, grandes decepções ou um certo desconforto quando se viu implicado na situação de repartir bens. Não importa o tamanho da herança: seja ela composta de imóveis, contas numeradas, obras de arte etc; ou uma simples bandeja banhada em prata, o Fusca 1976 ou mesmo aquela faca de churrasco com o cabo de osso. Na verdade, o ato de partilhar sempre é passível de confronto, de resgate de mágoas, de espertezas.

Em uma cena clássica de encontro de partilha, é garantido identificar uns tipos bem característicos. Por exemplo, os ponderados. Cheios de dedos, trabalham em costuras quase impossíveis para contemplar os mais diversos interesses. Normalmente, já investiram muitas horas de negociações prévias, apelando para o bom senso e o sentimentalismo, em um esforço justificado pelo respeito à memória do recém falecido. Porém, a única certeza para eles é a de assistir seus próprios interesses como os primeiros a serem sacrificados.

Outros que não podem faltar são os exaltados. Com os dedos em riste, fazem das cordas vocais coração na hora de garantir meia dúzia de talheres. Acusam a todos de conspirarem contra seus interesses, resgatam frustrações desde os anos infantis, consideram-se prejudicados pelo destino. Para eles, qualquer guardanapo que terá como sina o fundo da gaveta, qualquer terreno de arrabalde para o qual ficará devendo o imposto territorial, tudo será resultado de uma guerra particular. São os exaltados aqueles que mais se beneficiam em uma reunião de partilha. E, paradoxalmente, os únicos que sairão dela se queixando.

Os soberbos, por outro lado, fazem questão de estarem ausentes. Dão as mais diversas desculpas para faltar ao encontro de partilha. Porém, claro, deixando nas costas dos ponderados uma pequena lista de bens que gostariam de receber – estes, escolhidos a dedo, para o desespero dos exaltados. Nunca faltará alguém para criticar a atitude dos soberbos, reclamando que eles pensam estar acima de questões tão fundamentais para a família. Irão duvidar de sua masculinidade, dirão serem mal amadas, lembrarão deslizes dos filhos, desejarão que sejam os primeiros a morrerem, pois na morte não se leva nada – bem feito! As orelhas dos soberbos arderão muito durante este período de tempo.

Os emocionais compõem o grupo sobre o qual nada mais importa. Para eles, nenhum bem material irá suprir a ausência deixada por quem partiu. Eles se consideram abençoados pelos anos de convivência, enriquecidos pelos ensinamentos, gratos pelo legado humano. Entram na reunião tão derrotados como um boi no abatedouro. Mas, em algum momento, terão seus cinco minutos de destaque ao versar, aos prantos, sobre as virtudes de quem agora está no céu. Condenarão o desrespeito à memória expresso em tanta mesquinharia. Lembrarão que Deus está assistindo atos tão vis. Azar o deles: voltam para casa com um joguinho de chá de porcelana cujo açucareiro perdeu uma das alças.

Bom, existe o caso de quem morreu deixar um testamento. Então, na presença de um advogado, o destino de cada bem terá o dedo do antigo proprietário. O dedo que, aliás, poderá pressionar diversas feridas. Em situações como essa, os exaltados gritarão ainda mais alto, aparteados pelo grupo dos ponderados. Os emocionais repetirão “mas nem precisava” dezessete vezes – quando não abrirem mão de algo para calar os exaltados. Os soberbos serão representados por alguém. E, ao final, quem terá as orelhas aquecidas será aquele que partiu. O mesmo que daria um dedo para assistir a cena. Dedo, aliás, apontado para a justiça, pois quem se preocupa em deixar testamento, viveu bastante para conhecer cada herdeiro como a palma de sua mão. Para desespero de uns e alívio de outros.

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