Não é, Noé?

Número 442
Rubem Penz
A extensa planilha Excel de Noé contabilizava as últimas formigas, carrapatos, pulgas e – perigo! – cupins. Tinha fé de que os ácaros haviam embarcado nos pelegos que acomodariam os bichos para dormirem com mais conforto. O barco, robusto e colossal, equilibrava-se nas estacas sobre o solo seco. No ar, junto com a poeira que subia nos redemoinhos da pré-tempestade, pairavam dúvidas sobre a origem e o preço da madeira utilizada. O sábio homem à porta da embarcação desligou o laptop, armou-se do cajado e bradou:
– Superfaturado, mas bem no prazo! Que as águas purifiquem a alma dos outros!
A parede de chumbo sobre o horizonte havia transformado aquela manhã em um quadro impressionista. Trovões percutiam a ira de Deus. Raios cruzavam os céus, ameaçadores. Eis que surge na clareira que abrigava a Arca a figura esguia de Suelen, eriçando os pelos do braço da esposa de Noé, ainda em terra. Segura como uma Gisele Bünchen sobre a passarela, a moça cruza na frente da família. Sobe a rampa tão elegante quanto resoluta – nem FHC, nem Lula, Collor ou Dilma o fariam com tamanha propriedade. E, atrás dela, fecha-se a porta.
E o Homem escolhido pelo Criador para salvar o mundo do pecado toma seu posto na proa, altivo e orgulhoso, de mãos dadas com a viçosa mocinha. A esposa, atônita, grita lá de baixo:
– Noé, que fazeis aí em cima com essa sirigaita?
– Partirei com as águas! Essa é a Arca que preservará as espécies, contendo casais aptos à reprodução, como Deus mandou!
– Tendes ideia do tamanho do pecado que cometeis ao deixar vossa esposa e vossos filhos para trás? Esperais a clemência Divina, herdeiro de uma quadrúpede manca?
– Não temais por mim, fiel e valorosa mulher! Vi uma brecha na lei: tecnicamente, já sou viúvo, é uma questão de minutos. Desposarei Suelen enquanto navegamos guiados pela mão do destino.
Ventava muito naquela altura do campeonato, deixando o diálogo cada vez mais difícil. As últimas palavras de Noé para sua esposa foram algo como vou entrar antes de a chuva estragar a escova progressiva de Suelen, ou coisa assim. A preterida seguiu gritando impropérios até a água lhe cobrir queixo, silenciando-a em borbulhas. Enquanto isso, o velho planejava o Cruzeiro com a nova companheira, iluminados por castiçais e bebericando Romanée-Conti.
***
– Pai, a vovó já me contou essa história, e ela não é assim.
– Quem nos garante, hein? Quem nos garante?
– Noé sobe na Arca com a família dele, pai. Não inventa. Nem tem nada de superfaturamento, ou Suelen, ou brecha na lei…
– Infelizmente tem, meu filho. Sempre… Vou apagar a luz. Durma com os anjos.
***
– Romualdo, precisamos combinar umas coisinhas…
– O que foi agora, Beatriz?
– Você fica proibido de assistir o noticiário antes de colocar o Júnior pra dormir, ok?


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