Número 497
Rubem Penz
Surpreenda-me. Foi o que ela disse ao se despedir apressada. À noite comemorariam mais um aniversário do casal e, ano após ano, esse era seu único pedido: surpreenda-me. Mal ela sumiu para dentro do elevador, ele deixou o corpo escorregar com as costas apoiadas na moldura da porta até ficar de cócoras. Mãos na cabeça, cabelo entre os dedos, longo suspiro. Era uma segunda-feira. Sete e meia.
Enquanto trabalhava, ele passou a manhã pensando no assunto. Lembrou-se da vez em que a levou para fazer um piquenique em um descampado na cabeceira da pista do aeroporto. Entre o sanduíche de atum e o iogurte natural com canela, o rugir furioso e prateado das aeronaves tirando fininho. A toalha de mesa sobre a relva se transformou em lençol ao cair da tarde.
Ela passou a manhã envolvida com a análise final de um contrato que seu chefe assinaria no dia seguinte com os chineses. Culminância de quase dois anos de trabalho, três viagens internacionais, várias passagens por Brasília (com direito a sentar com ministro de estado), inúmeras caixas de remédio para enxaqueca.
À tarde, na pausa do café, ele se recordou de quando vendou os olhos dela e a fez adivinhar cada um dos dezessete sabores de uma sorveteria. Em cada acerto, um beijo demorado até a boca ficar quente outra vez – era a vez dele fazer a contraprova. Chamaram tanta atenção dentro do shopping que o gerente nem cobrou a fatura – ficaria por conta da multidão que juntou em roda, todos comprando sorvete. Rendeu até matéria de jornal. Ele guardou o recorte em algum lugar. Onde mesmo?
À tarde, foi ela a encarregada para a coletiva de imprensa. Diante das câmeras e dos gravadores, duelou com deputados que pareciam mais preocupados em auferir vantagens políticas e pessoais sobre o grande negócio que estava por ser firmado. Por vezes precisou segurar a raiva ao escutar loas ao papel do Executivo na transação. Como a criança é bonita, todos querem ser o pai.
Quando a noite chega, ele deixa com o porteiro do prédio um envelope contendo um endereço e o recado “vá de táxi”. Diz ao rapaz que apenas entregue a ela sem dizer nada, é surpresa.
Quando a noite chega, ela voa para Brasília urgentemente. Avisa por mensagem eletrônica – surgira um impasse. Prioridade máxima.
Ninguém resta surpreendido.
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