Interessante. Sempre que ouvimos o preâmbulo “posso ser honesto?”, o que será dito adiante está mais para crítica do que para elogio, mais para a severidade do que indulgência, mais para sisudez do que para amenidade. Em outras palavras, vem chumbo. O que torna, a contrário sensu, as palavras positivas, animadoras e leves meio desonestas.
Ampliando o quadro, as pessoas arrogantes, que adoram encontrar defeito em tudo e em todos, e fazem o papel do advogado do diabo (até quando isso não é solicitado) passam uma impressão de serem, enfim, muito honestas. Ao mesmo tempo, os naturalmente carinhosos despertam dúvidas – seriam só bajuladores? Estariam indispostos ao contraditório? Seriam uns fracos? Mentiriam para evitar o franco desconforto? (Ah, os trocadilhos…)
Quer outra? Falar mal denota ares de autoridade, enquanto elogiar parece subserviência. O mais interessante neste aspecto é que deveria ser o exato oposto: ver o bom no outro é um dos mais clássicos gestos de grandeza, enquanto a visão excessivamente crítica em boa parte revela insegurança. Ah, mas qual mestre parece maior? O que a todos vê de cima (e pisa no aluno) ou quem faz questão de se aproximar para melhor dar impulso?
Honestamente falando, fiquei muito desconfortável enquanto tecia estes raciocínios
A única explicação nasce do exame rigoroso de consciência: quando eu mesmo apelo para a sinceridade para justificar eventual censura, faço isso por quê? A resposta é ser a mentira benevolente uma tentação que mais parece com a virtude do que com o pecado. Iludir para não magoar seria compreensível. Coisa pavorosa a suposição de que nosso interlocutor não pode lidar com a verdade quando desagrada, né?
Honestamente falando, fiquei muito desconfortável enquanto tecia estes raciocínios – e desconfio que deixo você assim, também. Não sei se colocar a franqueza em xeque era o plano desde o início, ou o viés apareceu meio sem controle. O fato é que a tal “verdade nua”, quando parece revelar só o vil, deixa a impressão de que, no íntimo, somos todos piores do que nos mostramos. E demonstrar sucesso nos torna condenáveis. Mas que fracasso de crônica, Deus do céu!
Honestamente, somos todos, mesmo, piores do que nos mostramos. Gostei, Rubem. Na lata!
No seu caso, Tiago, o desconto é tão pequeno na relação com o valor que se torna um nadinha. Semvergonhice à parte, é claro! Valeu!
Bem de pertinho, ninguém é normal…..
Ninguém, Paulo. Ninguém…
“Se for falar mal de mim, me chame, sei coisas terríveis a meu respeito”. Tati Bernardi
Muito boa essa, Sílvio! Obrigado!
Fale pelo teu íntimo, Rubem, não pelo íntimo dos outros…
Sempre, sempre.
Não falo mais nada daqui pra frente!
Logo você, com tanto a dizer?
Já que posso ser honesta, prefiro não comentar.
Você tem mais do que honestidade, Zuzu: tem intimidade! 😉
Rubem, como sempre, fazes pensar…. A honestidade carinhosa sempre será melhor escutada que a verdade nua e crua… Para além da dicotomia honestidade X desonestidade, as pessoas tendem a escutar mais a forma que o conteúdo.
É verdade, Adriana: antes de o que dizer, como dizer! Obrigado!
Mentiras sinceras me interessam, já musicou o poeta.
Muito boa lembrança, Márcia! Obrigado!
A HISTÓRIA DA JORNALISTA FRACASSADA
Tomo emprestado, das minhas leituras em espanhol, fala rara que encontro de Katherine Mansfield: debe uno despertar a las cosas, en vez de discurrir sobre ellas. É preciso acordar para as coisas, em vez de raciocinar sobre elas. São palavras de uma jovem gravemente enferma dos pulmões, cujo fim se aproxima. Um homem sábio, conhecendo do seu estado, a acolhe, a pedido de amigos, de dar a ela a última alegria. Muito adiante alguém se referirá a este homem, afirmando que o valor de uma influência espiritual é medido pela qualidade das obras que ela inspira.
Pós-guerra, primeira metade do século vinte, não existiam canais digitais, o mundo buscava por algo. O influenciador a que me refiro usou da música, da dança, de seu modo peculiar e particular de se conduzir pela vida, viajar e trabalhar, para tentar oferecer, ou subtrair das pessoas, as certezas tão desejadas. Último recurso, se submeteu ao ofício de escritor “com esta espécie de habilidade artesanal que lhe havia permitido em sua juventude aprender tantos outros ofícios” – nota de editor.
O método consistia em alguém anotar a fala e, terminado um capítulo ou concluída a narração de uma história ou pensamento, ler para as pessoas ao redor, vigiando as reações. Instruído por tal experiência, modificar as anotações. Repetir a prova tantas vezes como fosse necessário. E se a vida insistia em se esgotar, saúde frágil, nem por isso o escritor sucumbiu aos prazos, à pressão da pressa. Trabalhou nas revisões por uma dezena de anos, tendo três objetivos:
• Extirpar as crenças e opiniões arraigadas no psiquismo dos homens acerca de tudo que existe no mundo;
• Fazer conhecer o material necessário para uma reedificação e provar a qualidade e solidez do mesmo;
• Favorecer no pensar e no sentimento do leitor a aparição de uma representação justa, não fantasiosa, do mundo real.
Tendo eu lido de Gueorgui Ivánovich Gurdjieff o seu Encuentros con hombres notables, livro esotérico, temo ter encontrado, senão sabedoria, preciosas lições acerca das finanças pessoais de um viajante aventureiro, que saiu da Ásia, viveu na Europa e viajou para América, num tempo em que isso parecia impossível para um homem nascido pobre.
Me lembrei deste livro ao assistir a minissérie da Netflix Inventando Anna. Quase quis acreditar que o fracasso retumbante, que culminou na prisão da golpista, teria sido evitado se Anna tivesse lido Gurdjieff e aprendido com ele outras habilidades – a de costurar, por exemplo!
Muitos homens notáveis, seja pelo trabalho, a boa índole, o bom coração, o poder de convencimento, a oratória, a forma arrojada de viver, investir, escrever ou outras façanhas, tentaram, e muitos conseguiram, enganar outros homens. São parte da história do mundo. Anna Sorokin, herdeira pobre de família pobre alemã – viveu na pele o sonho que virou o pesadelo americano da atualidade – é a versão feminina noticiada. A jovem ficou famosa por seus golpes, submeteu-se a experimentos midiáticos e teve o resultado da própria experiência compilado por terceiros.
Jessica Pressler, personagem Vivian Kent na minissérie, a jornalista fracassada, é a responsável pelo artigo que contou ao mundo a história de Anna. Acompanho o método de trabalho que ela adotou: mesmo sistema artesanal dos que o auxiliaram e do próprio Gurdjieff. Foi preciso intuir, ouvir, anotar, pesquisar, entrevistar, investigar o minucioso e equivocado raciocínio dos por fim retratados, registrar a percepção inicial e a reação aos fatos, o despertar dos envolvidos. Ela nos faz o favor maior de ser uma destas almas que quebram a cabeça e trabalham duro até conseguir, não desistem diante de negativas, e cujo valor de influência é medido pela qualidade das obras que inspira. Mulher notável.