Sempre que alguém me questiona sobre quando pretendemos contar para a Agatha a verdade sobre sua filiação, volta na memória a história vivida por Truman Burbank. Este nome não lhe diz nada? Reavivo a memória: interpretado com maestria por Jim Carrey, Mr. Burbank é o astro de The Truman Show, comédia dramática de 1998. Na história, o protagonista é o único que não sabe que sua vida é roteirizada e vendida para o mundo inteiro – todos ao seu redor são atores e a ilha onde vive é um cenário. A única vida ‘de verdade’, ativo valioso do reality show, é ancorada numa mentira original.
Transpondo, absolutamente todo o círculo de pessoas próximas a uma criança adotada sabe de sua condição natal. Quando o processo acontece a partir dos quatro ou cinco anos de idade, essa característica dispensa mistérios: há memória clara sobre a vida anterior à família adotiva. Ninguém precisa fingir nada, desmentir nada, nada há o que disfarçar. O mais interessante é que a adoção se torna um não-assunto, pois a vida em família migra para ser idêntica às demais. Ainda assim, fora do círculo mais íntimo, a confirmação de origem será, em circunstâncias especiais, relembrada. E tudo bem.
Quanto à adoção de bebês, duas das premissas anteriores se mantêm: todos no círculo íntimo sabem e o tema é um não-assunto – mãe, pai e filhos sendo tudo e apenas o que são. Ou seja, filhos, pai e mãe. Todos sabem, menos um: o bebê. Portanto, se ninguém disser a verdade sobre constituição familiar desde muito cedo – desde sempre e numa medida de compreensão infantil –, ao descobrir, a criança, ou, pior, o jovem sentirá o peso da traição. É como se todos ao seu redor fossem ora os atores do Show de Truman, ora o público. Pior: parecerá que sua origem é de alguma forma vergonhosa ou desabonadora.
Sou testemunha viva de que a paternidade é idêntica com filhos gerados e adotivos. A maternidade, ouso especular, é vivida de forma ainda mais intensa – bebês adotivos jamais serão acidentais, surpresa ou susto. Portanto, ao serem assim tão desejados e valiosos, o que há para esconder? Na ficção, a plateia se compadece da ingenuidade de Truman, torce pelo final da farsa. Num nível um pouco mais fundo de compreensão, todos deveriam estar preocupados com os míseros restos que sobrarão a ele, isto sim. Na realidade, Agatha jamais será traída em sua inocência.
* Texto composto durante o módulo Mosaico em Cartaz, da Oficina Santa Sede