Uma canção de amor

Pensava hoje pela manhã no tamanho do desprendimento, coragem e ousadia que significava a iniciativa de oferecer para alguém uma canção no rádio. Se ainda hoje, apesar de existirem muitas opções, este meio de comunicação é prestigiado por uma parcela enorme da população, imagina no passado? Aliás, é preciso definir o passado: aquele no qual não havia TV ou ela ainda engatinhava, e poucos liam jornais e revistas.

Tal oferecimento atendia aos melhores preceitos da mais pura arte da comunicação. Era, num só tempo, uma mensagem de grande alcance (à época) e milimetricamente dirigida ao público-alvo, pois, mesmo na hipótese de não ser escutada, a notícia chegaria aos ouvidos certos por meio da fofoca. Também havia cuidadosa produção envolvida: a letra da canção seria carregada de propósitos. Um pacote completo.

Enfim, oferecer uma canção no rádio era uma espécie de impulsionamento da serenata. Todos saberiam de suas intenções para regozijo ou constrangimento da outra parte. E a notícia viralizaria nos laços dos embrulhos nos armazéns, entre as cadeiras dos institutos de beleza, às mesas de botequim, por alfinetadas das costureiras, nas línguas aquecidas nos cafés, em sussurros nos confessionários…

– Padre, eu preciso me confessar.

– Diga, minha filha…

– Hoje o Adalberto ofereceu uma valsa para a Deoclécia e, antes mesmo da orquestra terminar, colecionei uma série de pecados. Comecei com a soberba: como Adalberto lançou olhares para ela e não para mim? Tive inveja e, num exame de consciência, notei que ela nasceu de pensamentos plenos de luxúria. Por fim, restou-me a ira.

– Isso é muito, muito grave, mas Deus saberá perdoar. Como contrição, dirija seu arrependimento ao altar e reze o rosário inteiro.

– Mas, padre, a igreja está lotada.

– Eu sei, eu sei. Um verdadeiro milagre a audiência desta rádio.

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